Chamada de artigos – Sinal de Menos #18

A revista Sinal de Menos chama envio de artigos para a sua edição #18. Somos uma revista para a crítica da sociedade da mercadoria que, dentro deste escopo, não impõe limitações temáticas ou disciplinares. Os artigos devem ser enviados até 31 de janeiro para o email dcunha77@outlook.com em formato Word ou compatível e texto com espaçamento 1.5.

Sinal de Menos #17


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A situação mundial foi poucas vezes tão complexa. Por um lado, assistimos ao crescimento exponencial de conflitos, bélicos ou não, entre Estados e no interior deles, em todos os continentes, por outro, uma nova fase de tecnologização da realidade baseia-se numa configuração da técnica que, ao invés de ser a tradução de novos valores que impulsionem a superação do trabalho alienado (Marcuse), tendem a reforçar a sua perpetuação violenta na era mesma do seu anacronismo: guerras (drones), novo estágio de desemprego estrutural via automação dos processos cognitivos (IA), vigilância generalizada (algoritmos, redes sociais). Gaza atualizou o genocídio e a destruição de um território. Nesse imbróglio a extrema direita conservadora e protofascista (quando não efetivamente fascista) continua a sua ligeira ascensão em estreita relação com uma esquerda que não apenas não combate suas causas efetivas na base nem nas ruas, como tem encarnado o último alicerce da velha ordem neoliberal definhante, enquanto pululam teorizações degradadas que elidem as questões fundamentais: capital e sua crise, e classe e sua perspectiva de autossuperação. É nesse contexto que nos abstemos de um editorial mais detalhado: a situação do planeta e o estágio atual da crise do sistema capitalista exigiriam uma atualização da teoria crítica e das organizações não-conformistas que incorporasse estes aspectos, o que demanda uma elaboração coletiva e internacional, com uma esquerda majoritariamente precarizada, como na época de Marx, embora desta vez assombrada pelo seu passado e futuro. Os textos reunidos no presente volume abordam algumas destas questões. A capa de FELIPE DRAGO, composta a partir de fotografia de autor desconhecido, busca retratar esse momento, apontando tanto para o passado quanto para o futuro, tanto para o anjo da história quanto para o freio de emergência.

Numa entrevista ampla e reflexiva, NEIL LARSEN, crítico literário e teórico norte-americano, discute a trajetória pessoal, intelectual e política que moldou seu engajamento de décadas com a literatura latino-americana, o marxismo e a teoria crítica. Desde seus anos acadêmicos formativos no meio-oeste dos Estados Unidos até seu vínculo duradouro com o Brasil – especialmente São Paulo e o legado de Roberto Schwarz – Larsen traça um percurso marcado por um compromisso profundo com a crítica dialética e imanente. Ao longo do caminho, relembra encontros-chave com figuras como Robert Krueger e Moishe Postone, além de oferecer críticas contundentes às tendências acadêmicas contemporâneas, incluindo a ascensão do discurso reacionário da decolonialidade. A conversa culmina em reflexões sobre a pedagogia, os desafios do ensino da teoria e um ambicioso projeto teórico em andamento sobre mimese e valor. Ao mesmo tempo autobiográfica e analítica, a entrevista é um testemunho de uma vida dedicada a uma erudição politicamente comprometida e intelectualmente rigorosa.

Traduzimos em seguida dois ensaios de LARSEN. O primeiro, Forma objetiva e “dissonância reveladora” n’As aventuras de Huckleberry Finn: uma leitura schwarziana experimental de Mark Twain, reexamina o clássico dos clássicos da literatura norte-americana a partir do conceito de “forma objetiva”, tal como desenvolvido por Roberto Schwarz a partir de Adorno. Em vez de tratar o final controverso do romance apenas como uma falha narrativa, a análise investiga como suas contradições formais refletem tensões sociais e históricas da América pós-Reconstrução, um caso de “dissonância reveladora” mais do que de inconsistência artística. A jornada paradoxal, em que a fuga da escravidão leva de volta à reescravização, espelha possibilidades frustradas de solidariedade de classe inter-racial, especialmente entre brancos pobres e negros escravizados. Com base em estudos sobre a repressão de classe no Sul escravista, o ensaio interpreta a relação entre Huck e Jim como um vislumbre utópico dessa solidariedade, sistematicamente sabotada pelas classes proprietárias, enquanto a figura de “Pap” Finn, o pai de Huck, é lida como tipificação da reação conservadora estadunidense, conferindo ao romance uma inesperada relevância contemporânea.

O segundo ensaio, Borges como realista, propõe uma interpretação inovadora de Jorge Luis Borges, desafiando a visão predominante que o posiciona exclusivamente no campo do modernismo literário. Ao analisar o conto “Funes, o memorioso”, Larsen identifica uma vertente realista na obra de Borges, caracterizada por uma atenção meticulosa aos detalhes regionais, culturais e históricos. Essa abordagem realista não se limita a uma mera representação mimética, mas manifesta-se através de uma narrativa que, embora fantástica, revela um profundo conhecimento da realidade local. Utilizando o conceito de “ideia fora de lugar” de Roberto Schwarz, o autor mostra como Borges emprega deslocamentos para questionar estruturas sociais e culturais, oferecendo uma visão mais complexa que une realismo e fantasia em sua escrita.

Noutro ensaio sobre o escritor argentino, “Tempo de lobos, tempo de espadas” – Nos porões de Tlön: idealismo feroz e estado de exceção permanente em Borges, CLÁUDIO R. DUARTE dialoga com o texto precedente, assinado por Larsen, bem como com “Uma poética da abstração”, artigo de William Augusto Silva publicado anteriormente em Sinal de Menos (#15, v. 1). Através da leitura de alguns textos variados da obra de Borges, emerge de fato um Borges “materialista”, mas caracterizado por um “realismo” complexo e de segunda ordem: um “idealismo feroz” que opera em elevado nível de abstração, generalização e ideologia de fundo conservador, pendendo para uma moral individualista e civilizatória, como simples contenção de danos. No entanto, sustenta o autor, tal estrutura literária é anticonservadora, pois é um contínuo processo de mediação e mescla de formas literárias acumuladas e reconstruídas pelo artista através da internalização formal de materiais históricos, que remetem aos processos violentos de fundação nacional argentina e latino-americana, à instauração do espaço abstrato das metrópoles, do capital e do trabalho como reino de “abstrações reais”, cujo desfecho global foi, tal como captado por Borges após a 1ª Guerra Mundial, a lógica de um estado de exceção permanente em escala mundial. Daí portanto emerge o “idealismo feroz” borgeano de “Tlön” e outros contos fantásticos: como crítica a esta lógica de abstração fantasmagórica e de bando soberano secreto, infame e pseudo-sacralizado que, do caudilhismo ao nazifascismo, tem buscado instaurar a “espada” da lei de exceção contra todo outro convertido em “lobo”, homem-fera, vida nua infame e exterminável.

Na sequência, em Metástase da superestrutura: a decolonialidade como sintoma, RAPHAEL F. ALVARENGA examina como a teoria decolonial, em sua forma hegemônica, cristalizou-se numa ortodoxia moralista, centrada na identidade como performance e marcada pela proliferação de uma “polícia decolonial” pautada numa concepção reificada de “lugar de fala”. Amalgamando histórias heterogêneas – das lutas pela independência na América Latina à descolonização africana e ao pós-colonialismo no sul da Ásia – numa grande narrativa, a dita teoria, em grande parte repaginação de tropos pós-estruturalistas e pós-coloniais (como a ideia de que o conhecimento é historicamente situado, vinculado ao poder e moldado pelas histórias coloniais) consolidou-se nas últimas décadas como marca acadêmica global, embora extrapole em muito os muros da universidade. Ao conceber a história como disputa entre sistemas de conhecimento, privilegiar essencialismos identitários e afetos de ressentimento em detrimento de uma análise rigorosa das estruturas sociais e das correlações de forças políticas em presença, e ao defender uma desvinculação do ideário libertário ocidental em vez do enfrentamento direto ao capitalismo, a atual ideologia decolonial não apenas bloqueia os caminhos para a solidariedade de classe – interracial e internacional – como também abre espaço para alianças altamente questionáveis. Dentre os temas tratados pelo autor, destacam-se as controvérsias dos cancelamentos, as limitações inerentes ao paradigma interseccional, os pressupostos linguísticos duvidosos, as ambivalências das fronteiras culturais fetichizadas, bem como a instrumentalização do Ocidente como espantalho ideológico.

Em Dos motoqueiros rebeldes à espiã em lágrimas: a tragédia da classe profissional-gerencial no cinema de Kathryn Bigelow, DANIEL CUNHA investiga a obra da cineasta estadunidense como uma totalidade histórica, defendendo – à luz da extensão do jovem Lukács desenvolvida por Lucien Goldmann, segundo a qual toda “visão de mundo” emerge da posição de um grupo social em uma situação histórica determinada – que ela expressa a visão de mundo da classe profissional-gerencial (CPG). O autor recorre também à interpretação dialética de Fredric Jameson e às teorias psicanalíticas de Herbert Marcuse e Christopher Lasch para traçar uma transformação ao longo dos filmes de Bigelow: de representações iniciais de comunidades marginais (marcuseanas) e figuras mediadoras, para retratos posteriores dominados por protagonistas com tendências narcísicas, identificando também uma fase de transição. Argumenta-se que a formação marxista-maoísta inicial de Bigelow continua a moldar as estruturas formais de seus filmes, que transitam, paralelamente, da dialética sintética para a dialética negativa. Esta trajetória resulta em uma aporia entre forma dialética e conteúdo moralizante — um impasse mais visível em sua obra pós-11 de setembro. Em vez de entendê-la como inconsistente, o autor a interpreta como sintoma da própria trajetória histórica da CPG nos Estados Unidos. Ao ler os filmes de Bigelow como expressões da consciência da CPG, também se fornece elementos para a discussão da teoria do autor a partir de uma perspectiva sociológica crítica e do papel político desta classe no capitalismo tardio. O artigo conclui especulando sobre o seu próximo filme, de fato atualmente em cartaz nos cinemas, e propondo respostas cinematográficas alternativas às crises contemporâneas.

Também assinado por DANIEL CUNHA, Teses sobre o trumpismo: crise do capital, falência da esquerda e neofascismo busca interpretar o que significa a ascensão de Donald Trump a partir de uma perspectiva histórico-mundial. O autor sustenta que as políticas liberais praticadas por democratas prepararam o terreno para o trumpismo, que pode agir como “agitador” enquanto não era afetado pelo “pânico moral” praticado pelos democratas. Em outra camada de tempo, o autor sustenta que o trumpismo é a terceira iteração, em nível mais elevado, do negacionismo de crise, que iniciou com Richard Nixon e o fim do padrão-ouro nos anos 70, que sinalizou o “anacronismo do valor”, e passou pelo projeto de hegemonia dos neocons. Esse negacionismo de crise já produziu catástrofes – no Vietnã, no Iraque – e as está produzindo novamente, de uma maneira que ficará mais clara apenas com mais perspectiva histórica. O antídoto contra os agitadores então seria a consciência de classe internacionalista, que se faz urgente inclusive para evitar uma terceira guerra mundial.

Em Indústria, lógica e guerra cultural, FREDERICO LYRA retoma o conceito frankfurtiano de indústria cultural em nova chave de leitura no intuito de estendê-lo em duas outras direções através do eixo constitutivo comum do conceito contemporâneo de cultural. Indústria cultural, lógica cultural e guerra cultural formam assim uma constelação. Demonstra-se que noção de indústria cultural, cunhada por Adorno, abarca para além do problema da arte, mas refere-se à administração e padronização de toda a produção cultural como mercadoria. A partir do pós-guerra, o capitalismo tardio consolidou-se como lógica cultural, tal qual identificado por Fredric Jameson, naturalizando sua dominação pela estetização da vida e pela integração total entre base e superestrutura. No presente, arte e cultura operam como engrenagens do capitalismo artista, marcado pela superprodução e irrelevância crítica. A radicalização desse processo aparece na noção de guerras culturais, conflitos em torno de valores e identidades que fragmentam as democracias contemporâneas. O mundo virtual torna-se campo privilegiado dessas disputas, em que representação e realidade se confundem, mas tenta-se mostrar que as guerras culturais apontam para além do virtual incidindo no real.

Fechamos a seção de artigos com Uma nova arte cortesã?, texto inédito de ANSELM JAPPE, que problematiza a oposição clássica entre “cultura erudita”, entendida como instrumento da dominação burguesa, e “cultura popular”, celebrada como expressão dos subalternos. Jappe demonstra que ambas se encontram hoje submetidas à lógica mercantil. As vanguardas do século XX, outrora insurgentes, foram assimiladas pelo capitalismo, de modo que a arte contemporânea converteu-se em “arte de corte”, a serviço das elites financeiras e de marcas de luxo, reduzindo a transgressão a estratégia de marketing. Dinâmica semelhante atinge manifestações como o rap e a street art que, embora frequentemente apresentadas como resistência cultural, são incorporadas ao mercado global na forma de mercadorias “rebeldes”. Contra tanto o mito progressista da autenticidade da cultura popular quanto a farsa transgressiva da arte contemporânea, Jappe indica duas possibilidades de contestação: práticas culturais desenvolvidas fora dos circuitos industriais (produção artesanal, iniciativas comunitárias) e a reapropriação crítica do patrimônio cultural, capaz de desencadear experiências formativas e resistir à padronização do imaginário imposta pelo capitalismo digital.

Encerramos esta edição com um poema sem título, sobre Gaza, da pluma de YAGO MELLADO, poeta, músico e tradutor espanhol. Os versos evocam um refúgio ilusório além do horizonte, do outro lado de um mar implacável que se revela uma zona fantasma onde todos os vetores de fuga convergem para uma mesma terra devastada: o deserto, que não se limita a se estender, mas prolifera, deixando apenas o zumbido estático da perda e da ruína. Se não há vida possível em Gaza, vida digna do nome, sugere o poeta, tampouco existem saídas para a humanidade: nenhuma brecha por onde escapar à entropia inexorável da ausência de sentido.

Outubro/2025

Sumário #17

Editorial

Entrevista com Neil Larsen

ARTIGOS

Forma objetiva e “dissonância reveladora” n’As aventuras de Huckleberry Finn
Uma leitura schwarziana experimental de Mark Twain
Neil Larsen

Borges como realista
Neil Larsen

Tempo de lobos, tempo de espadas
Nos porões de Tlön: idealismo feroz e estado de exceção permanente em Borges
Cláudio R. Duarte

Metástase da superestrutura
A decolonialidade como sintoma
Raphael F. Alvarenga

Dos motoqueiros rebeldes à espiã em lágrimas
A tragédia da classe profissional-gerencial no cinema de Kathryn Bigelow 
Daniel Cunha

Teses sobre o trumpismo
Crise do capital, falência da esquerda e neofascismo
Daniel Cunha

Indústria, lógica e guerra cultural
Frederico Lyra de Carvalho

Uma nova arte cortesã?
Anselm Jappe

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Poema sem título
Yago Mellado

Sinal de Menos #16, vol. 1

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Após um intervalo mais longo que o costume, a revista Sinal de Menos volta às atividades defrontando-se com um mundo estruturalmente abalado e alterado em todos os sentidos para pior… Em especial nestes últimos cinco anos parece que entramos em fase de aceleração e ampliação do caos global – muito embora olhando retrospectivamente fica claro que as tendências para essa situação já estavam dadas há um bom tempo. Há quinze anos, quando começamos nossos encontros e primeiras publicações pareceu-nos que ainda havia alguma energia social represada que merecia reflexão e expressão crítica. Havia bifurcações possíveis. Hoje o quadro se altera: os absurdos saltam à vista e são reiterados numa sociedade anômala e incorrigível, sem práxis alternativa que lhe caiba, como que dispensando até mesmo qualquer noção de crítica.

No quadro de crise sistêmica avançada, as guerras na Europa e em Gaza multiplicam as chances de uma catástrofe global, incluindo o uso de armas nucleares. A ascensão da extrema direita responde à tendência de desemprego estrutural, desclassificação social, migrações forçadas e inflação mundial crescentes face a face aos processos produtivos revolucionados pela robotização e as tecnologias ligadas à Inteligência Artificial, cujo sonho é outro pesadelo à parte. Ao lado da grande guerra quente emerge a guerra civil neoliberal disfarçada de ajuste e adaptação aos novos tempos, verdadeira guerra contra os marginalizados “ociosos” e perdidos da sociedade do trabalho, em que se sucedem os efeitos da precarização total do trabalho, o encarceramento em massa, a “racionalização” produtivista da escola, da assistência social e dos serviços de todos os tipos. As necessidades sociais passam a ser inimigas da nação enquanto o capital em um grau cada vez maior de concentração dá forma a mais uma onda de milionários e bilionários, o Estado entra na linha de fogo das privatizações e é esbulhado de maneira adiantada pela crescente espiral do endividamento para simplesmente poder manter e afiançar a pilha monumental de dívidas e compromissos políticos pré-estabelecidos. O Estado torna-se cada vez mais parecido com uma guerra de máfias e gangues, saqueado por lobbies corporativos e interesses privados. Só dessa maneira absurda e irracional a racionalidade civil-burguesa ainda é “confiável” e “tem sentido”, ou seja, mantendo mercados financeiros, bitcoin e de consumo artificialmente aquecidos, além dos oligarcas do poder e da riqueza de barriga cheia. O superávit fiscal importa ao capital que se alimenta da dívida pública e da ficcionalização das bases monetárias, tornando-se a melhor arma para assaltar a máquina pública e fazer governos de reféns de uma política de cortes e favorecimento de ainda mais loucos negócios nas fronteiras de expansão. Isso empurra então a máquina de acumulação para fins de acumulação ainda mais rápido e adiante para o abismo do colapso… Um circuito internacional de dívidas e endividados forma uma nova Cordilheira dos Andes a cada década, enquanto o Capital que se acumula em seus cumes nevados (prestes a derreter com as novas ondas de calor extremo?) devasta o meio-ambiente através das fronteiras de mercadorias do agronegócio e da queima de combustíveis fósseis e empobrece a sociedade, prostrada como massa assistida pelos programas sociais de salvação, sem margem de ação para qualquer transição energética ou modelo de “desenvolvimento ecológico alternativo” do capitalismo. O custo da reprodução dessa sociedade e seu modo de vida espoliador tornou-se incomensurável. Mas quanto mais atinge em cheio os trabalhadores precarizados e os territórios de extração de matérias-primas, mais as demandas por crescimento calam a opinião dissonante. No horizonte todos percebem o caos da devastação, da guerra e da pilhagem de todos contra todos. Os dois impérios geoeconômicos em conflito provavelmente apenas estudam o melhor momento para iniciar o confronto final.

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Contra isso, nada parece mais possível a não ser as vozes da crítica e da dissidência residuais, que no entanto são emudecidas ou estão derrotadas de antemão pelo simples esgotamento físico e político-moral das lutas sociais, que quase já abdicam de qualquer sofisticação teórica ou prática, pois luta-se pelo mais básico dos básicos direitos humanitários em meio à barbárie instalada. Não por acaso o motim é a forma informal de luta predominante neste período em todo o mundo. A sincronia dos processos de degradação social e ambiental se vê nitidamente na ascensão do individualismo neoliberal de massas, no novo conformismo radical das classes médias, nas formas de competição feroz no mercado de excluídos, em sua corrida por subempregos e alternativas rebaixadas de sobrevivência a qualquer preço. Tanto quanto se vê pela dimensão catastrófica inédita das mudanças climáticas em 2024, tais como previstos há décadas pela ciência climática: recordes de temperatura e aumento exponencial dos eventos extremos, das chuvas no Sul do Brasil até as secas na Amazônia e Nordeste, a continuação do desmatamento e da ampliação das fronteiras agrícolas, as populações indígenas vulnerabilizadas, a atividade mineradora e petrolífera (agora com projetos de expansão na Amazônia), enquanto o mundo amplia a escala de desastres e seus problemas talvez já irreversíveis, dentre eles o aumento da temperatura dos oceanos, a morte dos corais e a escassez de água potável, que já atinge cerca de um bilhão de pessoas no mundo. Tais tragédias não têm nada de didáticas. Para piorar a situação imensamente piorada, já surgem promessas de reconstrução do Rio Grande do Sul aproveitando-se do caos instalado para implementar o que Naomi Klein denominou a “doutrina de choque”: políticas de desmonte do Estado e apropriação de terras e recursos para novos empreendimentos privados. Depois de afogar a população e implodir os projetos e a legislação ambientais no estado, resta ao neoliberalismo esfolar a todos, especialmente os mais pobres.

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Em termos de política, esse quadro de opacidade e expectativas declinantes é seguido pelo encanto neoliberal autoritário de extrema direita, a cegueira final que tolda a visão crítica e se alinha numa espécie de “Internacional Neofascista”. Como o fascismo histórico, segue nacionalista, anticomunista e militarizada, mas agora também mais abertamente negacionista, fundamentalista religiosa e neoliberal-apocalíptica, com o velho gosto apurado pela falsificação e o desejo pela catástrofe. Javier Milei que o grite abertamente em meio ao empobrecimento geral dos argentinos: “Viva la Libertad, carajo!”, é o que unicamente importa a seus eleitores. A política de mega-encarceramento de Bukele em El Salvador poderia inverter o lema (“A la Prisión, carajo!”) e ambos estariam dizendo a mesma coisa. Ao que tudo indica, outras facções e partidos ganharão espaço, talvez formando governos ditos “conservadores” de ultradireita e caindo nessa esteira fatal (Estados Unidos, Holanda, Finlândia, Itália, Hungria, Polônia, talvez também Espanha, Alemanha, França, Portugal; além do Leste, Rússia, Ucrânia, e da Ásia, Filipinas, Índia…). No Brasil não é diferente, pois aqui temos uma das vanguardas do processo, o ex-presidente genocida e ecocida do Brasil proprietário, o Capitão dos “Conservadores” que representa para seus seguidores fanatizados a imagem da “guerra pela família, pátria e liberdade”, a “revolta contra o sistema” e agora mesmo, diante do desastre do Sul, a ética de guerra camuflada pelo lema anarcocapitalista-populista do “Agora é o povo pelo povo”.


Do outro lado desse espectro, a esquerda parece ter enterrado qualquer ética radical, para não dizer política, que se oponha ao Capital e ao Estado. Este é o modelo invertido que aposta no mínimo esforço de radicalização política, o modelo para uma esquerda declinante que se faz quando governa acuada por forças da ordem neoliberal em suas próprias fileiras e aceita jogar no campo do outro, por certo tendo de confrontar o poder de classe e a força dessa degradação ideológica que desponta no “mundo virtual paralelo” construído pela extrema direita bolsonarista. A esquerda lulista que já vinha degringolando desde o primeiro governo Lula, sem base social mobilizada e que, ao recusar engajamento em campanha pelo impeachment e disputar a eleição como se nada houvesse acontecido, ajudou a legitimar o bolsonarismo como “novo normal”, finalmente tornou-se simples capa legitimadora de um Governo de centro-direita, abertamente confessando que lhe resta pouco para fazer senão o “ajuste fiscal” e o “arranjo” do que é um puro ninho de contradições. Se não é por covardia, senilização e burocratização avançada de quadros, é no mínimo por falta de comunicação, articulação e imaginação crítica o que define o que sobrou dos antigos quadros dessa esquerda.


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A CAPA desta edição, produzida por THIAGO CANETTIERI, procura condensar todos esses temas produzidos em sua base pelas fantasmagorias do trabalho social abstrato. Se há motivo para editar ainda assim uma Revista de “crítica da sociedade das mercadorias”, este se tornou hoje quase exclusivamente uma questão de princípios teóricos renitentes mais ou menos reduzidos à moral de um pequeno grupo de pessoas: não aceitar o que aí está, mesmo que esse inconformismo abstrato nada altere no produto e na sociedade exponencialmente piorada que avante marcha.


Este número 16 da revista inicia-se, assim, com a entrevista do professor Daniel Feldmann feita em conversa com Frederico Lyra: A aceleração da guerra e do caos globais: Antissemitismo e Islamofobia como Ideologias de Crise. A entrevista, fruto de conversas que se iniciaram por volta do dia 10 de outubro 2023, isto é, poucos dias depois do atentado amok perpetrado pelo Hamas e no momento em que ficava claro no horizonte o horror absoluto que se anunciava com a futura a invasão de Gaza, foca-se nos elementos fundamentais desse tempo de aceleração da desintegração global, refletindo a partir do conflito em Gaza, captando a emergência das ideologias de crise complementares, mas vai bem além de seus termos, tecendo uma densa rede de mediações históricas com as questões do presente. Daniel Feldmann é economista e leciona no Departamento de Economia da Universidade Federal de São Paulo. Tendo feito uma contribuição anterior para Sinal de Menos sobre teoria da crise, também destacamos aqui um livro seu ainda há pouco lançado, escrito em parceria com Fábio Luís Barbosa dos Santos, que elabora a crítica fundamental das contradições dos governos “progressistas” na AL nesta etapa histórica nova da crise global (O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos, Elefante, 2022).


Quando terminamos o último número da revista, tínhamos como projeto a produção de um dossiê sobre escravidão moderna e contemporânea. Assim, abrindo o dossiê Escravidão, GABRIEL SILVA e AGNES DE OLIVEIRA, no artigo Escravidão penal, guerras e capital: o cárcere como proletarização, desvalorização do trabalho e a perspectiva abolicionista, procuram pensar a atualidade do encarceramento em massa e do trabalho escravo, como problemas até hoje ainda fortemente marginalizados dentro da própria esquerda. Pensar o tema significa dar lugar ao historicamente específico no Brasil e no mundo, e não dizer que tudo se repete como se a sociedade do trabalho vivesse no reino do Mesmo. Trata-se de analisar então o nexo funcional entre os fenômenos do encarceramento e do trabalho escravo, frequentemente apresentados como “arcaicos”, e a reprodução atual de uma totalidade social caracterizada pela crise estrutural do trabalho e a acumulação interminável de dinheiro, pelo racismo e a cisgeneridade.


Em seu artigo Uma workhhouse dos trópicosSequelas da escravidão em “O caso da vara”, de Machado de Assis, CLÁUDIO R. DUARTE discute um dos contos mais ilustres desse escritor que desvendou como a escravatura se enervou na consciência e nas práticas da sociedade periférica, em especial de seus potentados imaginários do tamanho da pequena burguesia da corte fluminense. Mostra como uma oficina de aprendizagem de costura pode disfarçar uma espécie de “casa de trabalho compulsório nos trópicos” algo similar formal e funcional aos experimentos de adestração do trabalho livre no mundo adiantado do centro. Anulando qualquer dissidência do feixe de varas do poder constituído, esse tipo de empreendimento lucrativo era um micro-laboratório local da combinação do arcaísmo escravagista com a moderna disciplina do trabalho abstrato que então se implantava no mundo, trançando o elo estrutural imprescindível entre os processos de produção e acumulação primitiva das periferias com a história da acumulação de capital em nível global. Machado de Assis não só dá conta de tais elos objetivos ocultos como dá a nota dissidente de uma crítica do encanto que paira sobre tal sistema de autoconservação pelo trabalho compulsório. Pois hoje mais do que nunca talvez todo trabalho tornou-se apenas trabalho compulsório disfarçado: punição e castigo de uma sociedade escravizada pelo capital.


A seguir temos dois artigos de HARRY CHANG, autor pioneiro da “teoria crítica da raça” a partir dos anos 70 nos EUA, publicados com introdução e tradução de Daniel Cunha, a saber: Dialética das categorias raciais e Raça e classe. Chang busca conceituar “raça” e racismo fazendo uso da teoria crítica marxiana, em particular a teoria da reificação e a dialética entre processo histórico e formação de conceitos. O resultado, como esperado, tem maior poder explicativo do que as noções liberais de “preconceito” e “representação”.


Fechando o dossiê sobre o tema, em O que resta da escravidão? Ou, a longa duração de um arcaísmo moderno, CLÁUDIO R. DUARTE propõe um diálogo com O soldado antropofágico – Escravidão e não-pensamento no Brasil, o novo livro de ensaios do psicanalista Tales Ab’Sáber lançado em 2022, elaborando uma espécie de deslocamento crítico-dialético por/de seus temas e principais problemas.

Passamos então para o segundo dossiê sobre o colapso ambiental. Em seu texto A natureza se declara inocente novamente! Da fome no Sahel de 1972 aos refugiados climáticos no Rio Grande do Sul, DANIEL CUNHA busca compreender a recente catástrofe no Rio Grande do Sul e especialmente Porto Alegre a partir da constituição histórica de duas visões de mundo nos anos 1960-70: a ciência climática e, na sequência, o neoliberalismo. Fazendo uso de dois de seus expoentes mais coerentes – o meteorologista argentino Rolando García e o economista estadunidense William Nordhaus -, mostra-se que, na disputa política pela forma do metabolismo com a natureza, a visão de mundo neoliberal, hegemônica atualmente ao longo de praticamente todo o espectro político, produz constantemente “zonas de sacrifício” cujos custos para evitar ou mitigar os danos do aquecimento global não são “economicamente viáveis”. Porto Alegre é o caso mais recente, onde confluem todas as escalas, da local à global.


THIAGO CANETTIERI, partindo das notícias acumuladas da catástrofe climática, apresenta em seu texto Crise ambiental | Crise urbana | Crise do capital a relação existente entre esses três termos. O diagnóstico da crise ambiental não pode ser completo sem considerar a transformação do ambiente no processo de urbanização e ambos não são compreendidos sem tomar em análise a dinâmica contraditória do capital. Desse modo, o texto trabalha em apontar as conexões entre a crise ambiental, a crise urbana e a crise do capital.


Em Ecologização do capital: esboços da críticaFormas capitalistas de enfrentamento da crise ambiental, JULIO CESAR PEREIRA MONERAT pensa, a partir de seu título sugestivo, as maneiras como o “capitalismo verde” se torna uma forma de ideologia suplementar para a terra devastada que produz e tenta recuperar para continuar a devastar, como ilustrado nos casos da reciclagem, da eficiência energética e da bioeconomia.

O artigo A Sociedade Exponencial, de YAGO QUIÑONES TRIANA, mostra a quádrupla convergência exponencial: produção, consumo, população e poluição. A sociedade do capital em crise obriga que as taxas de crescimento de cada uma dessas variáveis sejam cada vez maiores. Segundo o autor, isto apresenta uma contradição básica e dramática: como pode sobreviver uma espécie que tende a se expandir de forma desmedida se, basicamente, depende dos recursos limitados de um planeta finito?
O próximo texto procura pensar a relação entre ética e economia capitalista.

Mobilizando clássicos da sociologia (Manheim, Bourdieu e outros) e da economia política e sua crítica (Smith, Bentham, Marx, Keynes, Polanyi…) o artigo A economia e o carro de Jagrená, de GLAUBER LOPES XAVIER, desenvolve assim, sob a metáfora do “Carro de Jagrená” (da mitologia hindu), as formas do enlace e sobretudo do desenlace dos dois termos em confronto. A economia contemporânea segue desencaixada de qualquer referencial normativo objetivo obrigatório, movendo-se desgovernada, talvez para o nada do colapso socioambiental. Como dirá em sua conclusão, “todo o seu potencial produtivo é orientado pelo lucro”, pois apenas o autointeresse dos sujeitos de mercado mobiliza suas paixões. As digressões do texto tentam mapear como a economia política justificou “racionalmente” uma tal cegueira social equiparável a uma figura mitológica monstruosa.


PRISCILA MATSUNAGA, na sequência, põe a crítica teatral para pensar o mundo do dinheiro, comparando dois autores, duas peças: Shakespeare (O mercador de Veneza) e David Hare (O poder do sim). Em seu artigo O dinheiro não conhece a gramática do não, a autora aponta para o fim de linha na cena teatral, em que a positividade e a redundância do capital apenas se afirma e se confirma; como dirá sobre o trabalho de Hare: “O poder do sim faz coincidir conteúdo e forma e enreda o leitor e espectador em um ciclo que parece inescapável reafirmando o sim aos clichês, ao cinismo e ao dinheiro como convenção absoluta”.

Alberto Sartorelli forneceu à revista a tradução do texto “Abstração Real” e as origens da abstração intelectual na Antiga Mesopotâmia, do estudioso JOACHIM SCHAPER. Dialogando com os Grundrisse e a partir de descobertas historiográficas posteriores, o autor propõe que a abstração real foi constituída não na Grécia antiga com base na troca, como proposto por Sohn-Rethel, mas anteriormente, na Mesopotâmia, a partir da produção de mercadorias.

Maio de 2024.

Sumário #16 vol. 1

Editorial

Entrevista de Daniel Feldmann a Frederico Lyra
A aceleração da guerra e do caos globais
Antissemitismo e islamofobia como ideologias de crise

ARTIGOS

Dossier escravidão moderna e contemporânea

Escravidão penal, guerras e capital
O cárcere como proletarização, desvalorização do trabalho, e a perspectiva abolicionista
Gabriel Silva e Agnes de Oliveira

Uma Workhouse dos trópicos
Sequelas das escravidão em “O caso da vara”, de Machado de Assis
Cláudio R. Duarte

Harry Chang: pioneiro da teoria crítica da raça
Introdução por Daniel Cunha

Dialética das categorias raciais
Harry Chang

Raça e classe
Harry Chang

O que resta da escravidão?
Ou, a longa duração de um arcaísmo moderno
Deslocamentos dialéticos d’O soldado antropofágico, de Tales Ab’Saber
Cláudio R. Duarte

Dossier colapso ambiental avançado

A natureza se declara inocente novamente!
Da fome no Sahel de 1972 aos refugiados climáticos do Rio Grande do Sul
Daniel Cunha

Crise ambiental | Crise urbana | Crise do capital
Thiago Canettieri

Ecologização do capital: esboços da crítica
Formas capitalistas de enfrentamento da crise ambiental
Julio Cesar Pereira Monerat

Sociedade exponencial
Yago Quiñones Triana

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A economia e o carro de Jagrená
Glauber Lopes Xavier

O dinheiro não conhece a gramática do não
Priscila Matsunaga

Artigo traduzido

“Abstração real” e as origens da abstração intelectual na antiga Mesopotâmia
A história econômica da Antiguidade como uma chave para a compreensão e a avaliação da teoria do valor-trabalho de Marx
Joachim Schaper

Sinal de Menos #15, vol. 1

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Difícil encontrar uma reflexão que resuma de maneira mais justa e perfeita o estado atual do mundo e o tema principal desta edição de Sinal de Menos do que esta passagem d’O capital de Marx:


O capital, que tem tão “boas razões” para negar os sofrimentos das gerações de trabalhadores que o circundam, é, em seu movimento prático, tão pouco determinado pela perspectiva do apodrecimento futuro da humanidade e seu inexorável despovoamento final quanto pela possível queda da Terra sobre o Sol. Em qualquer fraude no mercado de ações, todos sabem que um dia a tempestade deve cair, mas todos esperam que o raio atinja a cabeça do próximo, após ele próprio ter colhido a chuva de ouro e o guardado em segurança. “Après moi le déluge!” é o lema de todo capitalista e toda nação capitalista. O capital não tem, por isso, a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração. Às queixas sobre a degradação física e mental, a morte prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele que aumenta nosso gozo (o lucro)? De modo geral, no entanto, isso tampouco depende da boa ou má vontade do capitalista individual. A livre-concorrência impõe ao capitalista individual, como leis externas inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista.


Depois de mim, o dilúvio! – é esta frase atroz quase convertida em automatismo mental que segundo Marx compele o sujeito capitalista a agir da maneira mais cínica, indiferente, como se não houvesse amanhã. É isso que converte o mundo em mero recurso, como se tudo tivesse de estar livre e disponível para servir a essa lógica sacrificial de trabalho e acumulação infinita. A pandemia da Covid-19 e a situação de guerra na Ucrânia vêm explicitando tais pressupostos de modo cristalino.


O bolsonarismo parece dar uma torção nessa reflexão quando acelera de modo voluntário esse processo de libertação de todo potencial destrutivo da abstração capitalista. Ele leva o “gozo” a outro patamar promovendo o extermínio em massa: para garantir que a economia não parasse, ou que a acumulação pelo menos empatasse com o supostamente acumulado. Ele armou o cadafalso das mil, duas, e por que não, três e quatro mil mortes diárias (pico de Abril de 2021). Estabeleceu a normalidade do genocídio e do ecocídio. Qual era sua meta original: quinhentos mil, um, dois milhões de mortos? E tudo ocorrendo como um processo “natural” inevitável? Razão ou insanidade? Seja como for, o Brasil dos atuais 660 mil mortos e 29,8 milhões de infectados (sem somar o total de subnotificação e outras falcatruas) pôs-se na vanguarda do morticínio, superando o número de vítimas da guerra ao terror dos EUA, estimada precisamente em 600 mil. Para piorar essa situação irracional, uma parte da crítica de “esquerda” (brasileira e estrangeira, especialmente alemã) tem participado do obnubilamento geral como que fazendo coro com o negacionismo antivax, caindo por vias diretas ou indiretas numa crítica regressiva, que corta as mediações particulares e concretas dos problemas, supostamente para abrir espaço para uma crítica “radical” das estruturas gerais do valor, do patriarcado, da ciência e da tecnologia, mais ou menos colocados em linha reta de continuidades arbitrárias e identidade total entre forma social e realidade material. Às vezes, essa iconoclastia resvala, contudo, numa crítica indeterminada e arrasadora contra a própria ciência e a razão, numa versão anti-aufklärer muito próxima do tradicionalismo religioso e do romantismo, de Heidegger e do pós-modernismo, dos novos animistas e primitivistas antimodernos a la John Zerzan. É surpreendente que essa iconoclastia abstrata conviva com a constante asserção sobre a crise climática – um alerta e um diagnóstico feitos pelas ciências naturais matematizadas.

A guerra preventiva da Rússia contra a Ucrânia de certo modo completa esse quadro de irracionalidades tocado pelo estado de exceção mundial em que as contradições do capital não são “superadas” mas explodem a estruturação “pacífica” da política, da diplomacia e do “doce comércio” mundial, quando os dois blocos de poder nuclearizado finalmente concretizam suas ameaças longamente cultivadas, afirmando-se como “nações autodeterminadas” na crise falimentar da globalização e sua concorrência mortífera. Nesses meses ficamos mais próximos do “apodrecimento final da humanidade e do despovoamento final” do planeta sob um grande sol artificial, desconhecido dos tempos de Marx: as várias frentes da guerra precipitam uma crise mundial de proporções ainda desconhecidas, em que não está descartada a possibilidade de uma guerra total, com o uso de armas químicas, biológicas e nucleares (o chamado eufemicamente “uso tático”).

Uma posição firme contra a invasão da Ucrânia não deveria, a nosso ver, ser confundida com um apoio à OTAN ou aos batalhões neonazistas instalados no país, enquanto se posiciona também contra a esquerda belicista dita “anti-imperialista”, cujos argumentos defendem, por meio de falácias (“tu quoque” e “whataboutism”), o mesmo poder arbitrário e ilegal das intervenções dos EUA e da OTAN em países periféricos como Iraque, Afeganistão e Líbia, enfiando-se de cabeça em sua cachaça politicista, esquecendo todas as consequências materiais catastróficas da guerra, a destruição do país e das populações, a nova crise de refugiados, o aumento do custo de vida e o empobrecimento geral dos mais vulneráveis em nível local e mesmo global. Essa esquerda sonhadora enxerga na indústria bélica e nos gasodutos russos, tanto quanto na nova rota da seda chinesa e na suposta desvinculação do dólar como moeda mundial, a reconstrução imaginária de um novo bloco “comunista” sinosoviético.

Em ambos os casos, temos o terror mais ou menos oculto do Capital transformandose em formas claras de terrorismo de Estado. O capitalismo reafirma suas leis de concorrência e espoliação selvagem, trazendo à tona a verdade brutal de seu processo civilizatório e da sua forma de sujeito autocrático. A destruição da culpa, a fuga acintosa de toda responsabilidade ética pelas ações exterministas e ecocidas do governo Bolsonaro, significam um nível de gestão autoritária, altamente militarizada e antipopular, e o cancelamento dos processos de socialização e simbolização que formam sujeitos singulares, capazes de mudar o rumo dos processos. É a condenação à morte dos sujeitos agora também no nível ético-político, na acepção mais crítica do termo. Enquanto no processo de desnazificação na Alemanha pensadores como Adorno, Sartre, Jaspers e outros procuram diagnosticar para combater suas raízes históricas, diferenciando as culpas e como elas podem e não podem ser demandadas dos agentes morais e políticos no continente arrasado, no Brasil temos um esforço gigantesco de des-culpabilização. Noutro nível, as ameaças expansionistas recíprocas de OTAN e Rússia tendem a funcionar como que no modo “piloto automático”, no plano de ações e reações previstas desde o fim da guerra fria e a afirmação do mundo unipolar, com a singularidade de estarem agora sob a cobertura ideológica de combater o “governo autocrático” e o “país de oligarcas” associado à China, ou de “desnazificar” a Ucrânia e garantir seu espaço de influência em todo o Leste Europeu e Europa. Gestores-carniceiros dão mostras de não ver nenhum problema em decidir pela morte por mistanásia de três quartos dos quase 660 mil mortos pela covid-19, tanto quanto na Europa alegam apenas seguir as determinações “objetivas” ou autodeterminações “nacionais” e fazer aquilo que se espera de impérios decadentes mas detentores de um arsenal nuclear que garante a “legitimidade” de qualquer tipo de ação terrorista para manter seu poder. No fundo, confessam-se como “agentes” da Bomba. No colapso social e ambiental divisado para este século, seus líderes terão sempre nela sua última desculpa.

Este então o panorama de fundo deste novo número de Sinal de Menos, que procura abordar de modo variado e especificado a “crítica do sujeito burguês ou moderno”, criando uma espécie de dossiê temático. Panorama que se inicia, por isso mesmo, com a ENTREVISTA com o psicanalista Tales Ab’Sáber, que conversa sobre assuntos variados de sua trajetória plural, das temáticas abordadas em seus livros e de sua interpretação do lulismo e do bolsonarismo. Gostaríamos muito de agradecer ao autor o aceite do convite, o rigor das respostas longas e meditadas… e a sua paciência de aguardar a publicação depois de um longo intervalo.


Os três textos que se seguem à entrevista – “DEMOCRACIA E AMOR”: um mergulho no espetáculo à brasileira, de Diogo Dias; UM PAÍS ENTRE (uma crítica curta de um curta-metragem), de Francisco Bosco; e O LABIRINTO FASCISTA E A MONSTRUOSA COLEÇÃO DE MERCADORIAS, de Tiago Ferro – dialogam com os trabalhos e as perspectivas de Tales Ab’Sáber, lançando luzes sobre as formas de dominação política típicas do “labirinto bolsonarista” e do nosso “espetáculo à brasileira”.

O dossiê sobre o sujeito e sua crítica especificada concretiza-se finalmente através da investigação de materiais literários. Em PEQUENAS E GRANDES ROBINSONADAS (Da proto-história da subjetividade ao declínio do sujeito autocrático), Cláudio R. Duarte busca realizar, por meio das pistas lançadas pelo Excurso I da Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, uma leitura cerrada de obras como a Odisseia, o Robinson Crusoé, contos e romances de Machado de Assis e, enfim, a prosa literária de Kafka e Beckett. A perspectiva genética do “sujeito autocrático” da modernidade, meramente esboçado e prenunciado em Ulisses, completa-se na primeira robinsonada do livro de Defoe, embora seja ultrapassada pelas figuras machadianas de um narrador volúvel e impostor que converte tudo em objeto de sua manipulação e escárnio, e por fim desmontada pela “robinsonada total”, como dirá Adorno, das personagens de Kafka e Beckett, em cuja errância e resistência à mobilidade pode-se interpretar o processo de proletarização, marginalização e dissolução do indivíduo isolado típico do romance burguês.


Em UMA POÉTICA DA ABSTRAÇÃO – Hipóteses sobre Jorge Luis Borges – William Augusto Silva apresenta uma leitura crítica do escritor argentino mais exemplar, buscando interpretar como a forma abstrata da prosa borgiana condensa em si processos sociais atrelados às condições de urbanização, massificação e mercantilização geral da vida, bem como à posição de classe singular de escritor periférico que se reconhece nesse lugar ambíguo. Dando sequência a esses esforços na interpretação de um outro grande escritor latino-americano, Cláudio R. Duarte estuda, em JUAN CARLOS ONETTI: A PROSA DO “MUNDO LOCO”. Ou, proletarização e subjetivação na periferia capitalista, as formas como o autor uruguaio Onetti tratou a questão da subjetivação da vida pobre, marginal e periférica através da decadência dos setores médios nos anos de crescimento e rápido declínio do cone sul na “desgraça” do subdesenvolvimento (de 1930 a 1960) em sua criação ficcional da cidade de Santa María. Em INSÔNIA: A “COLEÇÃO DE ENCRENCAS” DE GRACILIANO – o mesmo autor persegue uma hipótese semelhante para o caso brasileiro, investigando na trama formal os rastros do processo de modernização conservadora, decadência do patriarcado rural e da formação negativa ou bloqueada do sujeito numa coletânea de contos de Graciliano Ramos.


O volume 1 deste número 15 da revista termina com duas resenhas de Felipe Silva Terto: a primeira sobre livros de autores vinculados estreitamente à crítica do valor-dissociação (SOBRE OS DESCOMPASSOS DE UM CADÁVER – Um diálogo entre O homem sem qualidades à espera de Godot e Crítica ao feminismo liberal); a segunda sobre os 70 anos de uma obra maior de Adorno (“SABER QUE NADA SE É”. Ler
Minima Moralia 70 anos depois
).

A capa desta edição em dois volumes foi criada por Felipe Drago baseando-se na obra de Vhils, que é um jovem artista plástico português muito talentoso. A obra trabalha com as marcas e as ruínas do tempo histórico acumuladas na paisagem. Assim, nessa composição Felipe utilizou uma obra feita a partir do descascamento da parede de uma casa de uma pessoa que foi removida no morro da Providência no Rio de Janeiro para dar lugar a um teleférico na época das obras da Copa do Mundo do Brasil. O trabalho artístico de construção a partir desse descascamento e figuração é capaz de expressar formalmente esse processo contraditório de construção e demolição, bem como a resistência dos indivíduos a partir da memória coletiva. Além disso, o tema da dissolução e da destruição atravessa tudo. O trabalho de destruição expresso na foto expõe os rastros da história, o trabalho morto e da morte, os mortos, suas motivações e destinos, sugerindo a guerra e as ruínas acumuladas pelo capital, que parece de fato se encaminhar para o fim do mundo.

Apesar do longo intervalo, por motivos de força maior e outros superiores à nossa capacidade de trabalho e organização afinal limitada, esperamos que os dois volumes sejam bastante lidos e discutidos pelos nossos leitores, seja ao vivo, no lançamento, seja na seção de discussão dos textos aqui publicados.

Março de 2022.

Sumário #15, vol. 1

Editorial

Entrevista com Tales Ab’Sáber

“Democracia e Amor”
Um mergulho no espetáculo à brasileira
Diogo Dias

Um país entre
Uma crítica curta de um curta-metragem
Francisco Bosco

O labirinto fascista e a monstruosa coleção de mercadorias
Tiago Ferro

Pequenas e grandes robinsonadas
Da pré-história da subjetividade ao declínio do sujeito autocrático
Cláudio R. Duarte

Uma poética da abstração
Hipóteses sobre Jorge Luis Borges
William Augusto Silva

Juan Carlos Onetti – A prosa do mundo louco
Ou, proletarização fracassada e subjetivação periférica
Cláudio R. Duarte

Insônia
A “Coleção de Encrencas” de Graciliano
Cláudio R. Duarte

Sobre os descompassos de um cadáver
Um diálogo entre O homem sem qualidades à espera de Godot e Crítica ao feminismo liberal
Felipe Silva Terto

“Saber que não se é nada”
Ler Minima Moralia 70 anos depois
Felipe Silva Terto

Sinal de Menos #15, vol. 2

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Nosso segundo volume da revista de número 15 inicia-se com textos traduzidosde Neil Larsen, por Sergio Ricardo de Oliveira: O JARGÃO DA CRISE: Sobre a imanência histórica da linguagem em Adorno; REFLEXÕES SOBRE VIOLÊNCIA E MODERNIDADE NA AMÉRICA LATINA – À luz de The Furies de Arno Mayer. Os temas de Larsen giram em torno da forma de apresentação e representação da história, das revoluções e contra-revoluções na Europa e na América. O autor estadunidense mantém boas relações com a crítica literária de matriz marxista e frankfurtiana e com a crítica do valor-dissociação.


O próximo texto, de Rodrigo Lima, APOCALIPSE: aproximações de nosso tempo histórico, apresenta, a partir de reflexões extraídas do país bolsonarizado vivendo sob as condições da pandemia, da precarização e da competição sob o neoliberalismo selvagem, as figuras alegóricas do nosso apocalipse cotidiano para nelas enxergar as contradições da temporalidade histórica nesse tempo do fim, que não se completa. Já em CRÍTICA DA RAZÃO APOCALÍPTICA, Thiago Canettieri traça o diagnóstico para a racionalidade corrente numa era de expectativas decrescentes, buscando descrever o mecanismo implicado nessa razão, o que o autor denomina “colaboracionismo de catástrofe”.


Em BRASIL-DECLIVE: Sobre “O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho” de Fábio Pitta – Cláudio R. Duarte inaugura uma seção da revista dedicada a comentários de textos publicados nas edições anteriores da revista, tecendo considerações que em grande medida transcendem o comentário do texto para buscar a raiz de novas formulações teóricas. Na sequência, o mesmo autor faz uma espécie de resenha crítica do livro recente lançado por Thiago Canettieri (FIM DO SONO, INÍCIO DO PESADELO – Sobre A condição periférica, de Thiago Canettieri). Finalmente, no último texto deste número, Leonardo Domingos Braga da Silva elabora a resenha de um livro recém traduzido de Zizek (O ACONTECIMENTO, POR SLAVOJ ŽIŽEK).

Com esse segundo volume esperamos completar o quadro proposto para uma crítica do sujeito, que é também necessariamente crítica do sistema objetivado do capital.

Março de 2022.

Sumário #15, vol. 2

O Jargão da crise
Sobre a imanência histórica da linguagem em Adorno
Neil Larsen

Reflexões sobre violência e modernidade na América Latina à luz de The Furies de Arno Mayer
Neil Larsen

Apocalipse
Aproximações de nosso tempo histórico
Rodrigo Lima

Crítica da razão apocalíptica
Breves notas sobre o colaboracionismo de catástrofe
Thiago Canettieri

Brasil-Declive
Sobre o ensaio de Fábio Pitta – “O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho”
Cláudio R. Duarte

Fim do sono, início do pesadelo
Sobre A condição periférica, de Thiago Canettieri
Cláudio R. Duarte

O acontecimento, por Slavoj Zizek
Leandro Domingos Braga da Silva

Sinal de Menos #14, vol. 2

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Pouco mais de cinco meses após o lançamento do primeiro volume da Sinal de Menos 14, publicamos este segundo. No intervalo, mais 120 mil mortes por covid-19 foram notificadas no Brasil, alcançando a casa já dos 150 mil, e crescendo… Como numa marcha fúnebre inexorável – prefigurada pelas capas gêmeas de Felipe Drago – o fenômeno não só passa como  fenômeno “natural”, mas é cinicamente naturalizado pelos mercados e governos, que querem apenas o dinheiro circulando em seu curso normal. A revista segue na sua linha de formação crítica para a desnaturalização e o “fim dessa merda toda” (Marx). Gostaríamos de dedicar esta edição – em grande medida apoiada num dossiê longamente preparado sobre teorias críticas e dialéticas – à memória dessa massa brutalmente silenciada, e em particular às obras de Ruy Fausto e Marcos Müller, cuja partida nesse entretempo nos deixou intelectualmente mais pobres. 

Abrimos com uma ENTREVISTA que DETLEV CLAUSSEN concedeu a Jordi Maiso em 2009. Autor de uma biografia de Adorno (Ein letztes Genie, Frankfurt/M.: S. Fischer, 2003), com quem estudou nos anos 1960, o professor da Universidade de Hanôver partilha desde aquela época com Oskar Negt, de quem foi assistente, o intuito de desbravar novos caminhos para a teoria crítica da sociedade sem para tanto renunciar à radicalidade do pensamento dos principais protagonistas da assim chamada Escola de Frankfurt no esforço por desentranhar as potencialidades emancipatórias do presente e na medida do possível gorar a tendência à unidimensionalidade de um tempo sem qualquer profundidade histórica ou perspectiva de transformação. 

Em seguida, NUNO MACHADO esmiúça o conceito marxiano de trabalho e coloca em evidência os seus vários pontos de contacto com a dialética hegeliana em seu artigo Estranha forma de vida: o conceito marxiano de trabalho como universal concreto ou identidade-na-diferença. Em primeiro lugar, demonstra-se que o trabalho abstrato não é uma generalização mental, mas uma redução prática social. Em segundo lugar, evidencia-se que, embora o valor seja realizado somente no mercado, a sua determinação pelo tempo de trabalho significa que este é abstrato no momento da produção. Em terceiro lugar, os conceitos hegelianos de posição e pressuposição permitem provar que o trabalho abstrato é simultaneamente fisiológico e historicamente específico. Em quarto lugar, salienta-se que a categoria marxiana de trabalho é um universal concreto na acepção hegeliana do termo.

Também em relação ao trabalho, mas em seu aspecto histórico, DANIEL CUNHA, em A ascensão dos autômatos vorazes – a Revolução Industrial como imposição histórico-mundial de trabalho abstrato e extrativismo feralizado, partindo da proposição substancial e metodológica de Immanuel Wallerstein de que o sistema capitalista sempre evolui como totalidade, e não em subunidades nacionais, busca reconstruir a história da Revolução Industrial não como um processo britânico, mas histórico-mundial. Para tal, foca na mediação entre mecanização (centrada na Grã-Bretanha) e fronteiras de mercadorias dispersas na economia-mundo capitalista, dos Montes Urais ao Vale do Mississippi, da Cornualha à África Ocidental. O autor busca mostrar que a Revolução Industrial assim considerada foi uma colossal imposição de trabalho abstrato e extrativismo feralizado. Por seu turno, a resistência a essa imposição (rebeliões escravas, luditas, banditismo social etc.) também foi histórico-mundial, mas encontra-se invisibilizada na historiografia oficial devido às metodologias que reproduzem a ontologia do trabalho abstrato. A concepção de dialética implícita aqui deriva de Postone, Colletti e Adorno, como uma epistemologia historicamente específica da sociedade da mercadoria.

No próximo artigo, continuamos essa espécie de dossiê sobre a dialética primando pelo debate de posições teóricas entre dois extremos. No primeiro artigo, Sobre a Universalidade da Contradição e da Abstração Real: uma resposta hegeliana à redução marxista da dialética, THIAGO F. LION avança a tese de que nas últimas décadas se consolidou dentro do marxismo crítico uma forma de encarar a dialética como instrumento específico para a análise da forma-mercadoria e de seus desdobramentos, como dinheiro e capital. Segundo diversos autores tal especificidade se deve à “abstração real” que Marx descobriu em sua análise do valor, algo que seria totalmente diferente de outras abstrações, que se supõe terem seu lugar apenas no pensamento subjetivo. A proposta desse artigo é, a partir do resgate desse debate marxista, recolocar a questão do ponto de vista hegeliano. O que se apresenta então é que não apenas a contradição perpassa tudo, mas também que a existência de um abstrato efetivo, que domina a realidade, constitui o fundamento não apenas de formas sociais, mas também dos seres vivos em geral.

Em linha diversa, DANILO AUGUSTO DE O. COSTA, em Deleuze, Guattari e Marx – a crítica ao capitalismo como metafísica social, busca expor as linhas gerais da compreensão crítica de Deleuze e Guattari do capitalismo, tendo como base principalmente o livro O Anti-Édipo (1972), e de identificar a interpretação singular que os autores fazem de Marx, privilegiando os momentos da teoria de Marx que permitem, por um lado, formular uma crítica do capitalismo como metafísica social, desempenhando aí um papel central a categoria de fetichismo, e, por outro, elaborar uma psiquiatria materialista. Tal interpretação, operando deslocamentos em relação à teoria marxiana, está na base da elaboração pelos autores de um materialismo histórico-maquínico, utilizando um termo de Sibertin-Blanc, e permite colocar como central problemas políticos que passam por reflexões sobre a forma-Estado, a história de formações sociais, formas de organização e prática política. A partir dessa abordagem, e fazendo jus à afirmação dos autores segundo a qual “antes do ser, há a política”, o artigo busca nos afastar das leituras que privilegiam, em detrimento das contribuições de Guattari, as especulações ontológicas de Deleuze, da sua concepção do ser e, portanto, da natureza, como produzido praticamente num campo imanente de forças materiais intensivas e em constante diferenciação.

Em Contragolpes da dialética – notas difusas sobre viragens dialéticas em Hegel, Marx e Adorno, CLÁUDIO R. DUARTE recupera o tópico hegeliano do Gegenstoß (contragolpe, contrachoque, autorrepulsão, repelir-se de si, rebote, freagem interior etc.) como o cerne da teoria das negações dialéticas, contendo a designação dos pontos de inversão, virada, superação ou colapso, que para o autor seriam o “cerne racional” da dialética e o “núcleo temporal” de sua verdade. Se há movimentos no ser, nem todo movimento poderia ser descrito como “dialético”. Se a dialética da sociedade burguesa é ontologizada por Hegel, ele mesmo conhece limites à aplicação de esquemas de uma reflexividade dialética à natureza. Se em Hegel, assim, o contragolpe jaz no coração metafísico da essência e perfaz a resistência do conceito, assegurando a força do método especulativo contra toda razão subjetiva e contingente, em Marx e Adorno ele é tanto uma forma de apresentar as contradições objetivas do capital quanto a resistência do objeto social a suas identificações, ou do que há de objetivo no “sujeito” (pressuposto) e o que há de anacrônico no predomínio desse objeto (posto) como “sujeito automático” ou automovimento do dinheiro. Aqui o contragolpe seria ao mesmo tempo um freio à dialética desse sistema ofuscante e um impulso negativo (para) fora do jogo, que o faz retornar a seu fundamento irracional, levando-o ao seu ponto de colapso. Nos seus pontos de virada mais altos, a atualização do conceito, a superação do trabalho e a questão da liberdade são os temas que trespassam os três mestres da dialética.

Desde os anos 1980, não foram poucas as tentativas de aproximação entre as teorias francesas genericamente designadas como pós-estruturalistas e a crítica dialética de cepa frankfurtiana. Em A sereia e o desavisado – Ideologia Francesa, crítica dialética e a “matéria brasileira”, RAPHAEL F. ALVARENGA procura retomar o problema de sua articulação numa das feições que recentemente assumiu entre nós. Além do risco de positivação da “má infinidade” brasileira embutido na paixão parisiense da dissolução, está em jogo a compreensão adequada dos sentidos da crítica dialética num país periférico, a capacidade de se sopesar o influxo e a gravitação das ideias e formas estrangeiras numa sociedade de cultura reflexa, a possibilidade, enfim, de verificar criticamente a pretensa universalidade de teorias e categorias hegemônicas do momento à luz da experiência cultural acumulada sobre o fundo da modernização retardatária brasileira. 

Em Sobre a matriz fantasmal e o espetáculo – ser em tempo, homem sem mundo, SERGIO RICARDO OLIVEIRA intenta delinear algo do indivíduo abstrato atual ou espetacular que, afinal, reserva forças de superação, assim como dessas se entrevê sua própria destruição no horizonte das relações mediadas também abstratamente. Debord teria lido Anders? Parece que sim. Reinante pois é a temporalidade esquizofrênica a que a humanidade está fadada, e o que de mais pudesse implicar mudanças históricas que vêm acompanhando essa condição “espacializante” (Gabel). Para além de qualquer retorno a uma tipologia clássica das lutas sociais, os autores em voga atentam para o terreno do tempo e seus graus existenciais vividos, possíveis e “impossíveis” como para mostrar portais de criação de ambiências. Paralelo aos inícios do espetáculo integrado havia apenas focos de ideologia não materializada, ao mesmo tempo que as aparições dos tais portais perenes de futuro. Uma vez que o atualmente existente é em maior expressão tempo abstrato reconduzido, seria a criação de algo distinto da mera “liberação do tempo” o que se traçaria no além dos velhos tempos relativísticos e, consequentemente, na direção de um agregado de fluxo vital ainda sem nome e sem conceito relacionado concretamente fundado.

O próximo texto é Hipótese de definhamento da forma jurídica (e o atual capítulo brasileiro de seu processo), de LUIZ PHILIPE DE CAUX. O ensaio é composto de duas partes. Na primeira, é formulada a relação entre a forma jurídica e a forma-valor em Marx e Pachukanis para, a seguir, especular-se sobre a o processo de desenvolvimento dessa relação no último século. Esse processo é entendido como o da progressiva perda da efetividade do fetiche de autonomia do campo jurídico, isto é, sua autonomia ilusória, porém até o fim do século XIX algo fenomenicamente real e estruturante. Na segunda parte, tenta-se interpretar certos desenvolvimentos recentes da história brasileira como um processo no qual frações da classe capitalista que operam à margem do direito têm enfrentado e desbancado suas respectivas frações setoriais concorrentes que precisam do direito para tentar levar adiante a acumulação. Esses desenvolvimentos brasileiros são então pensados como possível capítulo do processo de debilitação da forma jurídica apresentado em primeiro lugar.

Em Direito e sociedade – a ação política no pensamento de Herbert Marcuse, ANDRÉ LUIZ B. SILVA tenta retirar o pensamento do pensador alemão do ostracismo – este provocado, talvez, por algumas recepções que teve sua obra –, resgatando o potencial crítico de sua filosofia. Nesta excursão, rememoram-se várias questões que sua reflexão filosófica nos legou, principalmente a importância de compreender a noção de ação política para uma efetiva transformação da realidade social. Apresenta o filósofo frankfurtiano como um verdadeiro crítico da sociedade produtora de mercadorias, mostrando que suas reflexões não perderam atualidade, muito pelo contrário. Tomando emprestadas as palavras de Paulo Arantes em “Recordações da recepção brasileira de Herbert Marcuse”: “salvo no dia em que se descobrir que o futuro já chegou e é isso mesmo que estamos vendo, desintegração social impulsionada pelo programa suicida da economia mundializada (…) que Marcuse será finalmente compreendido na sua verdadeira dimensão”. Ou seja, no momento atual, “onde o tempo continua sendo de fezes, maus poemas, alucinações e espera”, Marcuse parece essencial para desvelarmos alguns segredos dessa sociedade mística que de maneira brutal, lutando por sua reprodução, assinala o fim da humanidade.

Escrito nos anos 1930, O ponto fulcral é um fragmento de THEODOR W. ADORNO publicado a título póstumo na Alemanha e inédito em tradução. Embora alguns tenham visto nele o indício de certo “leninismo”, para nós ele exemplifica antes um materialismo necessariamente ligado à análise concreta de situações concretas, o que segundo o próprio Lênin seria um traço característico do pensamento dialético de Marx.

A tradução de Sérgio Oliveira do painel de ANDREI S. MARKOVITS, SEYLA BENHABIB e MOISHE POSTONE sobre a peça de teatro O lixo, a cidade e a morte de Fassbinder é um chamariz para uma caracterização do antissemitismo moderno, marcado dentre outros pelo argumento mitológico de que a destruição dos povos judeus equivaleria à própria destruição do “reino do mal”. A peça eivada de sinais explícitos e silenciamentos provenientes daquele argumento chama a atenção de como esta estética acaba sendo um aliado indispensável para a teorização social do vigente e do axiomático, e suas antecipações. A tradução procurou respeitar ao máximo os traços estilísticos dos autores (na dialética de não descuidar de um estilo não tão poético ou profético no vernáculo), o que poderia por vezes facilitar ou não as discussões futuras referidas no antissemitismo.

Em Dialética aberta ou negação determinada? Discussão da dialética nos “Seminários da Escola de Frankfurt”, ALESSANDRO BELLAN estuda momentos da gênese da concepção de dialética em Adorno e Horkheimer no final dos anos trinta a partir dos protocolos de discussão de ambos em torno do que viria a ser a Dialética do esclarecimento. Enquanto Horkheimer estaria mais próximo de uma “dialética aberta” de matriz kantiana, que trabalha a mediação constitutiva da factualidade como derivação a partir de uma essência, que não mais se fecha numa totalidade, em Adorno teríamos o privilégio de uma “historicidade radical” através da “negação determinada”, que, ao negar todo princípio primeiro, põe o foco na não-identidade entre essência e aparência, na “dissolução da aparência” enquanto “dissolução daquelas condições que impedem o aparecer efetivo do próprio fato, daquela aparência que impede que a própria aparência seja revelada como tal.” Alessandro Bellan é um professor italiano especialista em teoria crítica. Aqui publicamos com pequenos ajustes uma tradução já antiga feita por Cláudio R. Duarte, especialmente lembrada para dialogar com nosso dossiê sobre a teoria dialética.

Finalmente, Thiago F. Lion traduz do original em alemão o texto de ALFRED SOHN-RETHEL, até então inédito em língua portuguesa, O ideal da gambiarra – sobre a técnica napolitana. O texto de 1926 trata da apropriação dos objetos tecnológicos pelo povo de Nápoles – no então subdesenvolvido sul da Itália – em sua forma não intacta, isto é, como designado em português pelo vocábulo “gambiarra”. Além de ter exercido verdadeiro fascínio em filósofos contemporâneos como Giorgio Agamben – que chega a chamar a descrição de Nápoles por Sohn-Rethel de “estupenda” – o texto foi escrito em sua juventude, época de intenso convívio com pensadores que depois seriam parte da Escola de Frankfurt, como Theodor W. Adorno e  Walter Benjamin.

Outubro de 2020.

Sumário #14, vol. 2

Editorial

Entrevista

Teoria Crítica e experiência viva
Detlev Claussen

Artigos

Estranha forma de vida
O conceito marxiano de trabalho como universal concreto ou identidade-na-diferença
Nuno Miguel Cardoso Machado

A ascensão dos autômatos vorazes
A Revolução Industrial como imposição histórico-mundial de trabalho abstrato e extrativismo feralizado
Daniel Cunha

Sobre a universalidade da abstração e da contradição real
Uma resposta hegeliana à redução marxista de dialética
Thiago F. Lion

Deleuze, Guattari e Marx
A crítica ao capitalismo como metafísica social
Danilo Augusto de O. Costa

Contragolpes da dialética
Notas difusas sobre viragens dialéticas em Hegel, Marx e Adorno
Cláudio R. Duarte

A sereia e o desavisado
Ideologia Francesa, crítica dialética e “matéria brasileira”
Raphael F. Alvarenga

Sobre a matriz fantasmal e o espetáculo
Ser sem tempo, homem sem mundo
Sergio Ricardo Oliveira

Hipótese de definhamento da forma jurídica
(e o atual capítulo brasileiro do seu processo)
Luiz Philipe de Caux

Direito e Sociedade
A ação política no pensamento de Herbert Marcuse
André Luiz B. Silva e Camilo Onoda Caldas

Traduções

O ponto fulcral
Theodor W. Adorno

O lixo, a cidade e a morte de Rainer Werner Fassbinder
Novos antagonismos na complexa reação entre judeus e alemães na República Federal Alemã

Dialética aberta ou negação determinada?
Discussão sobre a dialética nos “Seminários da Escola de Frankfurt”
Alessandro Bellan

O ideal da gambiarra
Sobre a técnica napolitana
Alfred Sohn-Rethel

Sinal de Menos #14, vol. 1

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A atual pandemia do coronavírus (covid-19) escancara todos os fundamentos apodrecidos da sociedade das mercadorias. A capa de Felipe Drago representa esse descontrole social, utilizando o padrão formado pelas curvas de contágio e morte, mas que podem sugerir também os sonhos molhados dos global players nas bolsas. “A locomotiva da economia não pode parar!” – já começa a gritar o andar de cima, que há muito vive saltando de vagão em vagão, em ganhos simulados nos mercados financeiros e especulativos. O capital está travado e ameaça entrar numa longa depressão e assim colidir com seus limites se continuar na mesma rota suicida, mas, neste largo limiar de transição para o nada, é claramente mais fácil sacrificar as pessoas, eliminar alguns milhões de infectados, deixando-os morrer num isolamento doloroso, do que modificar um pouco que seja a rotina ensandecida dos negócios atuais e futuros. E quem dirá decepar a cabeça cega dessa máquina automática de sucção de trabalho vivo e exploração destrutiva de todos os meios? Não há como enxergar a negação nesse campo cego. Deve ser por isso que a esquerda tradicionalmente ligada apenas ao desenvolvimento acelerado das forças produtivas deposita sua fé nas emissões supostamente ilimitadas do crédito estatal (através de planos de um novo keynesianismo de emergência, em que pesa também a difusão ideológica fanática da “teoria monetária moderna”) ou espera a retomada da máquina chinesa de “produção socialista de mercadorias” para dar um jeito na coisa toda (como se esta fosse independente da concorrência mundial, de circuitos de dívidas e do novo imperialismo de crise que já anuncia suas novas rodadas).

Mas assim se engana, a nosso ver, quem pensa que só se trata da reprodução “automática” de relações de produção. O capital tem de passar no seu outro, o trabalho e a produção incessante de mercadorias, para se pôr como o que aparenta ser: crescimento justo e equilibrado, desenvolvimento sustentável ao infinito, bem-estar individual e coletivo etc. Como sempre, o sistema busca legitimar-se através da funcionalidade técnica de uma vida administrada recheada por mercadorias e discursos de integração (e indignação), no qual o zeloso trabalho de todos encontra o seu lugar. E é por isso que os capitalistas ou seus prepostos no governo tomam a dianteira para reiniciar o curso da máquina momentaneamente extraviada trabalhando como os funcionários mais ativos do capital. O Brasil, com seu presidente sociopata liquidando qualquer limite entre público e interesses privados da oligarquia neoliberal que o sustenta no poder, cumpre o destino de vanguarda mundial nesse assunto, apesar das aparências contrárias. A classe dirigente veste a máscara de “trabalhador patriota” que cumpre à perfeição o papel do “capitalista ideal”, aderindo ao uniforme da ordem e do progresso, com paramentos e gestos protofascistas diários, apontando como Inimigo número 1 a “liberdade” aparente de quem supostamente parou de trabalhar na quarentena. Os planos de reforço da austeridade e retomada desenfreada do crescimento já aparecem no horizonte. Para onde vamos é uma pergunta inconveniente. É isso que permite tal forma de governo se legitimar e se manter mesmo quando prega o genocídio “inevitável” de 100, 200… 500 mil, por que não?, reiterando seus vícios através do império da mentira e obtendo o apoio das classes médias, dos grandes aos pequenos empresários e de boa parte das camadas populares, que aqui nem bem receberam o auxílio emergencial (aparecendo-lhes talvez como um benefício dado pelo seu carrasco) mas já apenas podem sonhar em voltar ao “normal”. O normal lamentavelmente é a coação ao trabalho precário, um “se virar” na tempestade para trazer algum sustento para casa. É por isso também que esse governo já choca tão pouco a opinião pública brasileira e em breve mundial há muito funcionalizada pela indústria capitalista da cultura (agora agravada pela “era de pós-verdade”). Nesse intervalo, o consenso mínimo sobre a realidade e o sentido do processo social foi completamente destruído – menos aquele que estabelece que tudo o que é relevante para o deus-mercado precisa ficar intocado. Aqui a totalidade coercitiva pode surgir como uma injúria e um insulto ao “bom senso” democrático. O antigo “espetáculo integrado” (Debord) se normaliza à exaustão, mas convertendo-se abertamente em espetáculo desintegrado, no qual a norma é uma espécie de vale-tudo para retomar o fluxo dos negócios, mais atuais ou mais degradados, a grilagem de terras, a expansão das fronteiras agrícolas, o desmatamento etc., que já não escondem que servirão apenas a ilhas de bem-estar que ampliarão as desigualdades, a dessolidarização e o crescimento insustentável com base em empregos de merda, novas ondas de encarceramento em massa (racializado), violência (em especial a de gênero) e destruição ambiental. Alguns líderes mundiais saem por cima e com o prestígio reforçado por atitudes humanitárias, é verdade, prometendo retomadas milagrosas do crescimento perdido já para 2021. Outros têm a sorte de ter o apoio do alto escalão dos proprietários e é o que basta, restando apenas a questão “ética” de segunda ordem de como fazer para esconder o elevado número dos cadáveres da opinião pública. No fundo, se o vírus não afeta muito mais a classe média e os ricos, eis o que importa, é o que se requer para voltar à rotina, agora em ritmo redobrado de exploração para compensar os meses parados. Em todos os casos trabalha-se militarmente como nunca e por isso esse governo da crise como governo da morte é perfeito, alimentando o ódio e o ressentimento popular contra quem exige medidas de proteção social e mudanças estruturais imediatas. Só assim, de fato, reforçado pelo fanatismo e a militarização do trabalho, como reside em seu conceito, o “capital é produtivo” (como dizia Marx no Capítulo VI Inédito de O capital, a respeito da reprodução das relações de produção como um dos produtos fetichistas finais da realização do capital).

Noutras palavras, as relações capitalistas tenderão imediatamente a ser reproduzidas não apenas pela ideologia ou a inércia conceitual-categorial dessa sociedade fetichista, mas também por força política do Estado, e sem dúvida da maneira mais brutal possível, recompondo uma estrutura social em frangalhos – com milhões e milhões de desempregados e subempregados precarizados em condições cada vez mais miseráveis e próximas a uma economia de guerra, visando-se inclusive aí a aperfeiçoar os métodos de controle e vigilância militarizada, já disponíveis pelo poder geral de polícia em situações de exceção contínua. Que isso seja capitalismo de “livre mercado” ou momento de alguma transição histórica para um outro sistema de dominação social ainda pior, é o que não sabemos. O que se vê na ascensão de grupos de extrema-direita, que se arma e exige que o Estado relaxe a quarentena e endureça contra os “comunistas”, é índice de uma divisão radical em curso. Quando as coerções objetivadas do processo são reforçadas por meio do trabalho de todos os agentes, que contam apenas com o funcionamento normal da máquina via injeção trilionária de mais capital fictício, a crítica tem de apontar os becos sem saída se quiser encontrar algum ponto de contradição ou de revelação crítica nessa pandemia.

O capital fictício trilionário emitido é uma promessa ambígua, contraditória até a raiz da própria palavra, um ato que se desmente a cada passo: uma promessa de que nenhum futuro haverá para além do capitalismo de desastre, mas também a promessa de que os fundamentos dessa sociedade são voláteis e se declaram como uma espécie de hálito quente de um zumbi que já devora as próprias carnes. Para a máquina continuar funcionando ad infinitum é preciso muito engajamento – e é esse engajamento que não nos falta. A coisa nua, escancarada, se veste politicamente, isto é, ativamente, pelos que se sentem paralisados e encantados diante do monstro. Ninguém sabe onde está a saída, enquanto todos se espantam diante do poder formidável do capital de recuperar e normalizar qualquer situação. Mas não foi isso exatamente o que ocorreu em 1929 e mais tarde na ascensão do nazifascismo, ou na grande crise de 2008? Assim, esta edição de Sinal de Menos procura ligar alguns pontos essenciais da crise a fim de mapear o que há de não-idêntico nesta marcha para o pior, o que pode gerar, neste movimento, uma consciência lúcida de que esse sistema de coerções cegas prossegue em sua marcha para a frente apenas de uma maneira forçada.

Começamos com uma Entrevista de ROB WALLACE a Yaak Pabst publicada originalmente no jornal alemão Marx21. Wallace é biólogo evolucionista e filogeógrafo para a saúde pública, autor de Pandemia e Agronegócio, e fala sobre a crise do coronavírus. A entrevista é aqui publicada na íntegra.

Em seguida, apresentamos a tradução do texto de ROB WALLACE, ALEX LIEBMAN, LUIS FERNANDO CHAVES e RODRICK WALLACE, Covid-19 e circuitos do capital, feita por Boaventura Antunes, parceiro de Portugal, a quem agradecemos. Os autores desnaturalizam a pandemia, mostrando como ela foi gestada pelos modos de produção e distribuição do capitalismo contemporâneo, que se configuram como verdadeira incubadora de patógenos.

Na sequência, em O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho, FÁBIO PITTA argumenta que o crescimento da economia brasileira a partir de 2003 e a crise desta após 2012/2013 se relacionam com a economia de bolhas financeiras alimentadas a capital fictício, em consonância com o capitalismo contemporâneo em seu momento de crise fundamental. Fábio Pitta participa ativamente dos círculos de debate da “crítica do valor-dissociação” em São Paulo, com interlocução ativa em Portugal, Alemanha e França, em que aliás traduções deste ensaio estão sendo providenciadas. Segundo o texto, uma bolha de derivativos de commodities impulsionou as exportações e a capacidade de endividamento do país. Isso permitiu uma concorrência pelas dívidas por parte das empresas “produtivas”, o que aprofundou o desenvolvimento das forças produtivas, o aumento da composição orgânica dos capitais e a expulsão de trabalho vivo de processos produtivos. Tais processos perduraram até o estouro da bolha das commodities, entre 2011 e 2014, como consequência do estouro da bolha financeira mundial de 2008. Após 2012, aprofundou-se o asselvajamento social, sem que isso possa conduzir à retomada da acumulação substancial de capital.

No próximo texto, DANIEL CUNHA se concentra sobre o problema do valor de verdade das ciências naturais, questão crucial para a teoria crítica em momento de pandemia e aquecimento global, que são enfrentados racionalmente a partir dos seus conceitos matematizados. Porém, constata-se que muitas epistemologias correntes criticam os fundamentos das ciências naturais ao mesmo tempo em que aceitam o seu diagnóstico da crise ecológica global. O problema investigado, portanto, é o de uma possível aporia da história: pode um sujeito constituído por relações de fetiche produzir conhecimento válido para além dessa forma social fetichista? Em A trajetória do Antropoceno e o general intellect, o autor argumenta que é preciso fazer a crítica imanente das ciências naturais, de maneira que as “tensões de cisalhamento” geradas pelo que ele chama de “general intellect planetário” possam realizar o seu potencial crítico-emancipatório.

Como todo leitor que acompanha a Sinal de Menos sabe, sempre estimamos a a crítica social complexa embutida em obras de arte, sem compartimentações entre  teoria crítica e teoria estética. Assim, os próximos textos assumem esse risco de falar de arte e crítica de arte nesse momento grave em que o sistema imerge na falsidade espetacular e a extrema-direita flerta com as estratégias de manipulação e estetização política do fascismo. Levar a sério a literatura como potente reveladora do processo social é o que CLÁUDIO R. DUARTE procura no ensaio Em estado de fazenda – Lima Barreto e o desmanche da ilusão nacional. Antes marginalizado, hoje ainda talvez subestimado pela opinião pública, Lima Barreto sai a campo para tomar à letra a metáfora do estado de sítio ampliado como um “estado de fazenda”. Passando pela leitura imanente de diversos textos e tendo esse fio como seu condutor, o artigo aponta a estratégia literária de subtração de duas ilusões necessárias do país na Primeira República (o nacionalismo e o cosmopolitismo), que encetam uma terceira estratégia de subtração do encanto, dessa vez como desintegração que abre o movimento contido por tais identidades fetichistas, encontrados na dinâmica de sua prosa de confronto com os resultados do escravismo colonial, fazendo antever um resto social imanente que não se dobra sem mais à modernização autoritária que ainda hoje enfrentamos nesse trajeto de longa duração.

Seguem-se duas análises de Bacurau (2019), filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles. No artigo Bacurau: para além do nevoeiro… no meio da barbárie, FREDERICO RODRIGUES BONIFÁCIO e MARIA CLARA SALIM CERQUEIRA fazem uma análise da recepção da obra, tendo em vista o contexto bolsonarista em uma era de expectativas decrescentes. A velha aposta nos “milagres da dialética” – para nos valermos dos termos de Paulo Arantes – se reafirma na contemporaneidade como traço constitutivo da experiência estética e intelectual brasileira acerca do sertão ao menos desde Euclides da Cunha. Os autores apontam que o longa, embora apresente um profícuo diagnóstico deste tempo histórico, não apresenta qualquer alternativa emancipatória – como parte substancial da crítica tem compreendido –, senão que reafirma a barbárie como forma de ser da mediação social em tempos de colapso.

A segunda análise é de certa forma um contraponto a isso. Em Objeto não identificado – Bacurau: cenas de um mundo pós-colapsado, CLÁUDIO R. DUARTE, THIAGO CANETTIERI e RAPHAEL F. ALVARENGA se propõem a tarefa de uma crítica imanente do filme, que assim, lido sob a disciplina de sua forma, passa a render significados insuspeitados pela crítica. Nesse sentido, teríamos aí de fato um “objeto não identificado” que não pode ser visto do espaço, das alturas de um espírito classificatório, mas apenas determinado através do debate específico e inquietante que se extrai dessa situação particular de comunidade involuntária e autogerida num futuro próximo pós-catastrófico. Inquietante também, então, porque o filme incomoda a boa gente cidadã ao lidar com uma negatividade radical posta em contexto, que, como convém, é dupla, dá rebote e tensiona o espírito. Se essa forma sedimenta a violência da sociedade contemporânea ao mesmo tempo ela põe a questão pelo seu outro não identificado, condensado na lógica de suas cenas.

No ensaio Velhas novidades alegóricas do Recife, FREDERICO LYRA faz um breve percurso sobre as mutações recentes que um lugar particular do Brasil, a cidade do Recife, a sua região metropolitana e mesmo o Estado de Pernambuco como um todo, vem sofrendo nos últimos anos. A política institucional local, a cultura popular, a indústria cultural, o carnaval, as mudanças urbanas, o mundo do trabalho, o cinema são tratados de maneira a criar uma constelação alegórica onde se encontram mutações as mais diversas. Tenta-se assim refletir sobre a aceleração da lógica da desintegração.

Em Considerações sobre a dissociação-valor na atualidade, JÉSSICA CRISTINA LUZ MENEGATTI retoma a crítica do patriarcado produtor de mercadorias elaborada por Roswitha Scholz, do grupo Exit!. Nessa conceituação, o asselvajamento do patriarcado empiricamente observável é explicado como um momento da crise sistêmica – ainda mais nesse momento da pandemia em que as denúncias de violência contra as mulheres cresceram em média 45% no Brasil. Ademais, a autora busca estender o seu significado interseccional, considerando igualmente o problema das “outras diferenças”, tais como o racismo.

No artigo Fanon via Lacan, CIAN BARBOSA procura articular elementos contemporâneos para uma releitura da contribuição crítica de Frantz Fanon, à luz da crítica da ideologia articulada ao pensamento de Lacan. Após apresentar elementos teóricos fundantes dos paradigmas franceses do século XX, com os quais ambos autores estavam implicados, o artigo busca esboçar as relações mútuas entre Fanon e Lacan, em uma leitura retroativa. Aqui a contribuição da obra fanoniana se revela tanto uma crítica ainda atual da ideologia racialista, quanto portadora de lições basilares para a crítica da ideologia em geral.

O último texto deste volume de certa maneira concentra, resume, sintetiza muito do esforço de reflexão que essa revista buscou realizar diante da situação de crise do capital e crise da pandemia do covid-19. É nas grandes cidades que todos os temas abordados explodem e se potencializam. O artigo Planeta de Favelas: 15 anos depois, de GUILHERME CHALO e MAURÍLIO BOTELHO, faz uma avaliação das principais discussões levantadas pelo geógrafo Mike Davis em seu já clássico texto publicado na New Left Review em 2004 e depois ampliado no famoso livro Planeta Favela. O objetivo é atualizar algumas das reflexões a partir dos dados mais recentes do processo de favelização mundial, levando em consideração não apenas os relatórios da ONU-Habitat (que serviram de motivação inicial para Mike Davis) mas divulgações recentes sobre o avanço da precarização habitacional e da pobreza, tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundo. Entre os aspectos considerados fundamentais para compreender a explosão das favelas no mundo estão o desemprego crescente e a exclusão social, pois a base de uma favelização generalizada é a constituição de um excedente populacional decorrente da crise estrutural do capitalismo.

O volume 2 de nosso número 14 deve ser lançado muito em breve, com textos de calibre mais teórico, acompanhando mas cruzando, assim, para o lado oposto dos que pensam que entrar em movimento é tudo e é o que basta.

 

Maio de 2020.

[-] Sumário #14, vol. 1

Editorial

Entrevista (Origens da Pandemia) com Rob Wallacepor Yaak Pabst

Artigos

COVID-19 e circuitos do capital
Rob Wallace, Alex Liebman, Luis Fernando Chaves e Rodrick Wallace

 

O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho

Bolha das commodities, capital fictício e crítica do valor-dissociação
Fábio Pitta

A trajetória do Antropoceno e o general intellect
Crítica imanente das ciências naturais para uma improvável emancipação
Daniel Cunha

Em estado de fazenda
Lima Barreto e o desmanche da ilusão nacional
Cláudio R. Duarte

Bacurau
Para além do nevoeiro… no meio da barbárie
Frederico Rodrigues Bonifácio e Maria Clara Salim Cerqueira

Objeto não identificado
Bacurau: cenas de um mundo pós-colapsado
Cláudio R. Duarte, Thiago Canettieri e Raphael F. Alvarenga

Velhas novidades alegóricas do Recife
Frederico Lyra

Considerações sobre a dissociação-valor na atualidade
Asselvajamento do patriarcado e abordagemdas diferenças em Roswitha Scholz
Jéssica Cristina Luz Menegatti

Fanon via Lacan
Aportes teóricos para uma leitura contemporânea
Cian S. Barbosa Whately

Planeta de Favelas
15 anos depois
Guilherme Chalo e Maurílio Botelho

Sinal de Menos #13

Sinal de Menos 13
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“Se o travo amargo do negativo se projeta sobre o todo, para nós não se trata de atenuá-lo, mas sim de aguçá-lo, com a maior contundência possível. Pois as crises que se desencadeiam não são garantia alguma de superação social, tornando-se antes motivo para reflexão sobre as formas de converter tal negatividade cega em algo realmente negativo e superador.”

Assim dissemos no editorial de nossa primeira edição, em 2009. Quase dez anos após, com a eleição de Bolsonaro, o travo parece mais amargo do que nunca. Para nós isso não é surpreendente, mas antes é a confirmação de tendências que o tempo histórico já apontava. Na revista especial de agosto de 2013, desmanchando o consenso geralmente otimista sobre as Manifestações de Junho, indicamos as linhas de força em combate nas ruas, como que tracejando a possibilidade da atual hegemonia da extrema-direita e a necessidade de crítica do conformismo neoliberal-autoritário ascendente naquele momento. A capa deste número, preparada por Felipe Drago em composição com pintura de Constant Nieuwenhuys (A liberdade insultando o povo, 1975, um desvio de Delacroix), seria uma representação in negativo da atual situação do mundo. A partir dela, muitos artigos desta edição encaminham-se na direção de pensar esta tensão social crescente entre Coerção, Desintegração e Liberdade.

Com tristeza, após nossa última edição, também recebemos a notícia do falecimento de MOISHE POSTONE, em março de 2018. Postone, de quem já publicamos uma entrevista e o seu seminal “Antissemitismo e nacional-socialismo” em nosso número 8, é referência fundamental para a crítica do valor, tendo lançado as suas bases já desde os anos 70, quando delineou a partir de sua leitura dos Grundrisse a sua conceituação do capital como uma forma impessoal e abstrata de dominação pelo trabalho. Publicamos neste volume duas traduções de suas últimas reflexões: uma Entrevista com Agon Hamza e Frank Ruda e seu artigo A crise atual e o anacronismo do valor. Em ambos, percebe-se a preocupação de Postone em compreender, no quadro geral de sua teoria, a ascensão do novo populismo de direita nos países do Norte, de forma que ele oferece chaves para se pensar também o caso brasileiro, avant la lettre. Diz Postone na entrevista que “o movimento em direção a um novo fascismo, em parte, expressa a dor vivida pelas pessoas como um resultado da transformação do capital na ausência de um movimento político que dê um sentido a essa dor de maneiras que não sejam antissemitas nem façam de bode expiatório grupos diversos de forma xenofóbica ou racista”. Entendemos que o legado teórico de Postone oferece valiosas portas de acesso para se elevar esta dor ao conceito. Isso fica bem ilustrado no texto recente que publicamos, que delineia o quadro geral de sua teoria para explicar as grandes transformações dos séculos XX e XXI, além de refletir sobre o que seria uma “crise secular da valorização”. Publicamos também o texto de Postone sobre Derrida, Desconstrução como crítica social. Aqui se evidencia a sua impressionante capacidade de interpretação histórica das formas de pensamento (pós-) modernas, rebaixando suas pretensões ao nível que lhes cabe na memória histórica das “fantologias” e “espectralidades” que, se fornecem boas perspectivas para se quebrar a linearidade do tempo histórico vazio e homogêneo do capitalismo, não nomeiam a desintegração social objetiva no cerne dos conceitos; antes, os desconstrói para poder decretar seu fim precipitado e gozar com suas dispersões, esquivando-se da crítica frontal da forma-mercadoria.

Em Constituição e destituição pelo trabalho – Observações sobre o tempo e a liberdade à margem da obra de Moishe Postone, CLÁUDIO R. DUARTE retoma a dialética do valor, do trabalho e do tempo abstrato desenhada por Postone em sua obra, apontando algumas consequências para a crítica atual do sistema. Recuperando os conceitos-chave de mediação e de dominação social abstrata pelo trabalho, o autor lança outro olhar para o que parece ser o ponto mais frágil dessa obra seminal: a crise do valor como crise da luta de classes, do paradigma produtivista do marxismo tradicional e do sujeito histórico por ele pressuposto. Em vez de despachar a questão através da negação abstrata, confirmando impressões superficiais de leitura, o autor retoma a ideia do próprio Postone de sacar da “contradição” a necessidade da “negação determinada”. Aqui, deste processo de crise e desintegração geral do sistema categorial capitalista, incluindo a destituição das formas de pensamento, subjetividades e necessidades “moldadas” pelo fetichismo, pode renascer o movimento social como libertação: superação do “trabalho livre” e do tempo social abstrato de modo imanente, que é também o movimento do próprio texto quando examinado mais de perto.

O texto A categoria trabalho abstrato e seu desenvolvimento histórico, de ERNST LOHOFF, publicado no primeiro volume da revista Marxistische Kritik (1986), como inicialmente se chamava a Krisis, é, juntamente com a “A crise do valor de troca”, de Robert Kurz, um dos primeiros ensaios da teoria da crise pensadas sob a perspectiva da “crítica do valor”. Publicamos aqui uma tradução inédita de Marcos Barreira.

A revista segue com A natureza na “contradição em processo”: contribuição para o debate da teoria da crise, artigo no qual DANIEL CUNHA procura desenvolver a teoria da crise elaborada por Robert Kurz, Moishe Postone e Claus P. Ortlieb, em específico em relação à crise ecológica e sua relação com a crise da valorização. Para tal, a partir de conceitos de Jason W. Moore, procura mostrar que o valor do capital circulante, em seu papel mediador da composição orgânica do capital, deve ser considerado na teoria da crise. A seguir, busca mostrar que noção de “naturezas históricas” (Jason W. Moore) é mais adequada do que a de “fissura metabólica” (John Bellamy Foster) para tal tarefa no quadro geral da crítica categorial do valor.

Na sequência, publicamos o texto de ANDRÉ VILLAR GOMEZ e MAURÍLIO LIMA BOTELHO, O fim do “capitalismo verde”. Após enumerar uma série de impactos ambientais de grandes proporções, o artigo busca apontar que aquele curto período em que foi propagandeado (e até mesmo acreditado) um “capitalismo verde” terminou: as preocupações ambientais foram deixadas de lado diante da contração econômica mundial, e o discurso de um mercado clean deu lugar ao cinismo da exploração dos últimos recursos naturais. Um dos argumentos do texto é que esse processo é parte integrante da crise estrutural do capitalismo, que se manifesta também como um colapso ambiental.

Seguindo os esforços de desvendar o fenômeno abstruso do bolsonarismo, RUBEM KLAUS traça dois ou três densos bosquejos sobre o problema, em A nova cruzada do fantasma autoritário brasileiroO bolsonarismo como fantasia e conclusão lógica do golpe de 64. Comprimindo o presente numa estrutura fantasmática arcaica, em que confluem relações do passado neocolonial e neoliberalismo hardcore, o bolsonarismo confirma a constante nacional de uma história que não passa, ou apenas repete a catástrofe da mesma desintegração com fins de manter a espoliação social em níveis estratosféricos, ao mesmo tempo em que praticamente liquida também o presente e o futuro, submetendo os trabalhadores à miséria, reprimindo toda oposição e desidratando a política e o Estado como possibilidade formal de resolução de conflitos. O que seria a conclusão lógica do trabalho sujo do golpe não de 16, mas de 64. O artigo aponta ainda como este projeto se distingue do fascismo original ou da “fascistização” dos Estados latino-americanos da época da Guerra Fria e por que ele tem um potencial ainda mais devastador do que esses últimos.

A seguir, publicamos o texto de DANIEL CUNHA, Bolsonarismo e “capitalismo de fronteira”, no qual o autor busca compreender esse fenômeno no quadro histórico-mundial da trajetória do capitalismo. Assim, para o autor, o bolsonarismo não pode ser compreendido no quadro de referência do nacionalismo metodológico. Trata-se, antes, de um fenômeno que não pode ser separado do capitalismo de crise global, no qual a alta composição orgânica do capital exige capital circulante barato produzido em fronteiras de mercadorias na  periferia do sistema, com a mediação dos agentes locais. A rapina e a repressão são constituintes desse papel do Brasil na divisão internacional do trabalho em plena crise de valorização. Como adendo, analisa o “antiglobalismo” representado pelo ministro Ernesto Araújo a partir da perspectiva da decomposição do valor como mediação social.

CLÁUDIO R. DUARTE, em seu Ex-homens na fronteira literária latino-americana apresenta, como indica seu subtítulo, a Tradução e análise de “Las moscas” de Horacio Quiroga. Tradução inédita, mas mais do que isso o autor analisa o que permanece latente neste e em outros textos seminais desse escritor uruguaio-argentino, precursor de grandes temas literários do continente. Nas fronteiras argentinas da selva e do chaco, ele flagra as tensões sociais que esfacelam o mito liberal do pioneiro, transpostas em forma literária sob as faces enigmáticas do horror, da abjeção e da morte, e que remetem ao sentido do processo de escravização, exploração e extermínio da população indígena e mestiça proletarizada, conduzido pelo Estado nacional e apagado da memória coletiva. Na dramatização da alucinação de um personagem moribundo, a força reflexiva de mais um desses “ex-homens” anônimos comparece nomeando uma espécie de “protofantasia” que se espalha em toda a série literária latino-americana, como índice da barbárie civilizatória do capital.

O próximo artigo, é de THIAGO CANETTIERI, Para uma crítica dos afetos da crítica. O texto reflete sobre as condições de possibilidade para uma nova crítica social a partir de um viés específico: o dos afetos. Com isso, o autor propõe uma discussão sobre angústia, desamparo e mal-estar, tentando colocá-los como substrato para a tarefa da crítica.

DANIEL CUNHA, em Crise do capital e carisma apocalíptico busca explorar e historicizar esse conceito weberiano para o entendimento da explosão trans-nacional de figuras carismáticas. Para tanto, constroi um modelo no qual insere tal noção no curso da “trajetória da produção” (Postone), usando também o conceito “esotérico” marxiano do Estado (como alienação). Com isso, a explosão carismática é situada historicamente na época do “anacronismo do valor”, de modo que se diferencia das explosões de carisma históricas.

O mesmo autor, em Pós-capitalismo regressivo e “inércia conceitual” especula sobre os limites epistemológicos da ciência social, inclusive da dialética, na era da crise da formação histórica que dá origem às próprias categorias de pensamento, argumentando que a crise do capital é também uma crise epistemológica. Mais do que isso, o autor coloca a provocação: já não estaríamos vivendo sob as primeiras formas de manifestação de um “pós-capitalismo” para o qual ainda não dispomos de categorias analíticas adequadas?

Seguimos com a resenha de LEOMIR HILÁRIO A crítica do valor à prova da atualidade, do livro “Poder mundial e dinheiro mundial” (Robert Kurz).

A revista fecha com Discruso da Paulista, comentado, no qual o discurso de Jair Bolsonaro é pontuado por comentários de Daniel Cunha.

Agradecemos a Caroline Nogueira, Diogo Carvalho, Germano Nogueira Prado, Luiz Philipe de Caux, Manoel Dourado Bastos e Vinícius Domingos por atenderem nosso chamado à tradução coletiva da entrevista de Postone.

 

Março de 2019.

[-] Sumário #13

Editorial

Entrevista com Moishe Postone, por Agon Hamza e Frank Ruda

A crise atual e o anacronismo do valor
Uma leitura marxiana
Moishe Postone

Desconstrução como crítica social
O pensamento de Derrida sobre Marx e a Nova Ordem Mundial
Moishe Postone

Constituição e destituição pelo trabalho
Observações sobre o tempo e a liberdade à margem da obra de Moishe Postone
Cláudio R. Duarte

A categoria trabalho abstrato e seu desenvolvimento histórico
Ernst Lohoff

A natureza na “contradição em processo”
Contribuição para o debate da teoria da crise
Daniel Cunha

O fim do “capitalismo verde”
André Villar Gomez e Maurílio Lima Botelho

A nova cruzada do fantasma autoritário brasileiro
O bolsonarismo como fantasia e conclusão lógica do golpe de 64
Rubem Klaus

Bolsonarismo e “capitalismo de fronteira”
Com adendo: comunidade e nacionalismo na era da crise do valor
Daniel Cunha

Ex-homens na fronteira literária latino-americana
Tradução e análise de “Las moscas”, de Horacio Quiroga
Cláudio R. Duarte

Para uma crítica dos afetos da crítica
Angústia, desamparo e mal-estar
Thiago Canettieri

Crise do capital e carisma apocalíptico
Daniel Cunha

Pós-capitalismo regressivo e “inércia conceitual”
Daniel Cunha

A crítica do valor à prova da atualidade
Resenha de Poder mundial e dinheiro mundial, Robert Kurz
Leomir Hilário

Discurso da Paulista, comentado
Daniel Cunha, sobre discurso de Jair Bolsonaro

Sinal de Menos #12, vol. 2

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Em novembro de 2016 lançamos a primeira parte do número 12 de Sinal de Menos. Aqui segue o volume 2 deste mesmo número, apesar do longo intervalo de mais de um ano. De maneira geral, ele avança análises da decomposição social da periferia capitalista mundial e local, passando pelo estudo do processo de estruturação do Estado Islâmico e a situação atual no Oriente Médio – através de um conjunto de textos que forma um Dossiê Islamismo –, além da crítica marxista das formas jurídicas, a análise das bases do pensamento neoliberal, a discussão teórica sobre as lutas de classes e a reavaliação de um poeta das ruínas novinhas em folha da jovem nação brasileira no fim do séc. XIX.

A revista inicia-se com a ENTREVISTA com MARILDO MENEGAT, professor Pós-doutor em Filosofia pela USP, atualmente trabalhando como professor adjunto IV na Escola de Serviço Social da UFRJ. Em uma série de perguntas respondidas por e-mail, Marildo reflete criticamente sobre a situação atual do Brasil pós-Dilma e o papel histórico do Partido dos Trabalhadores na trajetória do colapso da modernização periférica.

Na abertura da seção de artigos, temos o ensaio de MARCOS BARREIRA, “’Onda conservadora’ ou declínio social?” O texto contrapõe à ideia de “onda conservadora” uma descrição do conservadorismo como elemento ideológico profundamente arraigado na sociedade brasileira. O “pacto social” lulista é descrito como uma aliança com o conservadorismo dominante durante um período relativamente breve de crescimento econômico. Nesse contexto, o retorno de temas abertamente conservadores indicaria não uma verdadeira guinada ideológica, mas o esgotamento das formas de administração da crise social da era Lula.

Em seguida, temos o referido dossiê sobre o Islamismo, que reúne traduções de textos publicados entre 2006 e 2015 nos círculos da revista alemã Krisis, mais um texto inédito de Maurílio Lima Botelho. Em “Deus acolhe a crise”, ERNST LOHOFF afirma que as novas comunidades culturalistas são um produto da crise da sociedade da mercadoria. Em particular no espaço de influência islâmica, o fracasso da modernização recuperadora e a falência do marxismo tradicional deixou um vácuo interpretativo que foi ocupado pelo fundamentalismo islâmico. Longe de ser “tradicional”, o islamismo seria hipermoderno.

Em “O grandioso final do universalismo”, KARL-HEINZ LEWED analisa o fundamentalismo islâmico moderno como o herdeiro da “vontade popular” após o fracasso da modernização retardatária nos países de influência islâmica. De acordo com a sua análise, o ponto de vista defendido pelo fundamentalismo islâmico em oposição aos interesses particulares é o interesse geral na forma da lei e do direito, porém não mais ancorada no conjunto de uma nação, e sim em uma instância metafísica de soberania divina. Essa relação reflete a erosão das bases do Estado nacional, que não tem mais condições de mediar o conjunto dos interesses privados e de zelar pelo funcionamento geral da máquina. A fuga para a esfera transcendente revela não apenas o caráter metafísico da forma do direito, mas também a crise fundamental dessa forma.

Em “Insurreição, e depois?”, ERNST LOHOFF reflete sobre a forma dos movimentos populares “insurgentes” desta década, da Primavera Árabe aos protestos contra a Copa no Brasil, do Occupy Wall Street ao Egito, dos Indignados na Espanha aos protestos contra a Troika, entre outros. Todos esses movimentos passam por um ciclo efêmero de rebelião e resignação e, por fim, parecem condenados ao fracasso. Não importa quantos milhões de pessoas fiquem temporariamente mobilizadas sob esse auspícios, a verdadeira força de mudança social continua a ser a dinâmica capitalista. Isso significa que é necessário não somente “organização” da luta, mas uma elaboração teórico-prática que ponha radicalmente em questão a socialização pelo dinheiro e a política estatal.

LOTHAR GALOW-BERGEMANN, em “De Moscou a Mossul” argumenta que o movimento antifascista (Antifa) deve ter no jihadismo um dos seus alvos a serem contrapostos. Segundo ele, a simpatia de setores da esquerda com o jihadismo decorre da proximidade das suas concepções históricas do sujeito.

No ensaio “Desgraçadamente moderno”, NORBERT TRENKLE retoma temas desenvolvidos no texto de Ernst Lohoff. Ele argumenta que o islamismo não pode ser explicado a partir da religião, e vê um campo comum entre o fundamentalismo islâmico e a nova extrema-direita ocidental no contexto da crise do capitalismo.

Em “As origens do Estado Islâmico no Iraque: colapso social e guerra civil no Jardim do Éden”, MAURÍLIO LIMA BOTELHO refaz o percurso histórico de ascensão do Estado Islâmico (ISIS), recuperando em linhas gerais as condições sociais e econômicas do Iraque nas últimas décadas, focando nos conflitos militares que foram o pano de fundo desse processo. A rejeição jihadista ao “Ocidente” é sustentada por uma afirmação violenta de uma identidade religiosa particular, uma tentativa de enfrentar o vácuo social deixado pelo colapso econômico e estatal iraquiano. Pela complexidade do tema, o texto se prende aos limites da fundação do Califado e das operações do ISIS no Iraque.

THIAGO CANETTIERI, em “A categoria trabalho na (re)interpretação da teoria do valor e na luta de classes”, afirma que vários autores, dentro do campo marxista, se empenharam em refazer o estatuto da crítica do capitalismo. Como um dos possíveis pontos de partida para isso, considera que os processos materiais e concretos da vida social estão dominados, sobretudo, pela forma social abstrata do valor. E, nesse contexto, se faz necessário revisitar a categoria trabalho a partir de uma posição mais radical, que seja mais voltada aos fundamentos críticos da teoria marxiana. O objetivo do autor é apresentar como a categoria trabalho revisitada pode oferecer elementos para (re)interpretar a teoria do valor e da luta de classes a partir da leitura dos próprios textos de Marx.

Reflexões dessa mesma natureza ecoam pelo ensaio de DANILO AUGUSTO DE O. COSTA, em “Especulação sobre a luta de classes”, que visa, a partir da articulação da teoria da crise do capitalismo e do valor com as análises das atuais dinâmicas do poder e estudos sociológicos sobre o atual regime de trabalho e condição do proletário, especular sobre os limites da antiga forma da luta de classes, sobre as formas de lutas que passam a tomar a cena e a relevância das experiências de auto-organização e autogestão para um processo de emancipação.

DIOGO MARIANO CARVALHO DE OLIVEIRA, em seu “Direito, democracia e a política como torção do simbólico”, tem como objeto a análise do fenômeno jurídico a partir de uma abordagem dialética de alguns de seus conceitos fundamentais, principalmente no tocante às noções jurídico-filosófico-políticas de liberdade, igualdade e democracia. A partir da investigação de sua efetividade, o autor expõe as relações entre essas noções e os conceitos de forma jurídica, permitindo a compreensão de como eles se relacionam de maneira intrincada e interdependente. No entanto, o autor propõe demonstrar que a plena realização desses conceitos articula-se através da realização de puros meios escusos, ausentes de uma finalidade propriamente axiológica, que não se deixam ver sob um primeiro olhar e que acabam por legitimar o funcionamento de uma democracia que se mantém sob um regime policial excludente.

No último ensaio da revista, “Cruz e Sousa: a contraluz do Iluminismo – Poesia, abstração e história de um malogro nacional”, de CLÁUDIO R. DUARTE, temos uma reavaliação crítica da estranha poética desse artista ainda hoje mal compreendido. Em vez dos estereótipos que o classificam sem mais como um poeta simbolista e decadentista, devotado apenas a temáticas espiritualistas e esteticistas, o ensaio busca apresentar um artista bem enraizado no solo do movimento abolicionista e republicano brasileiro – entendido como um movimento pela transformação e a construção nacional, que, como se sabe, terminariam por falhar miseravelmente. O país capitalista atrasado e desigual persistiria reproduzindo seus mecanismos de dominação quase como uma “condenação fatal”. Nesta chave, sua poesia passa a ser uma espécie de contraluz do pseudoesclarecimento brasileiro, trazendo à tona o processo silenciado, apontando também o formalismo do capitalismo periférico, que gira em torno de ideias sem fundo e sem peso em nossa construção. Ao invés do clichê do poeta “abstrato” e “nefelibata”, entra a violência da abstração, da alienação, do racismo e da morte grudada na alma dos oprimidos, transpostas em páginas de grande literatura.

A revista finaliza com a resenha do novo livro de Christian Laval e Pierre Dardot – “CE CAUCHEMAR QUI N’EN FINIT PAS – Comment le néoliberalisme défait la démocratie” – por FREDERICO LYRA DE CARVALHO.

Março de 2018.

[-] Sumário #12, vol. 2

Editorial

Entrevista com Marildo Menegat

“Onda conservadora” ou declínio social?
Marcos Barreira

DOSSIÊ ISLAMISMO

Deus acolhe a crise
Ernst Lohoff

O grandioso final do universalismo
O islamismo como fundamentalismo da forma moderna
Karl-Heinz Lewed

Insurreição, e depois?
Ernst Lohoff

De Moscou a Mossul
Lothar Galow-Bergemann

Desgraçadamente moderno
Por que o islamismo não pode ser explicado através da religião
Norbert Trenkle

As origens do Estado Islâmico no Iraque
Colapso social e guerra civil no Jardim do Éden
Maurilio Lima Botelho

OUTROS ARTIGOS

Direito, democracia e a política como torção do simbólico
Diogo Mariano Carvalho de Oliveira

A categoria trabalho na (re)interpretação da teoria do valor e na luta de classes
Thiago Canettieri

Especulações sobre a luta de classes
Danilo Augusto de O. Costa

Cruz e Sousa: a contraluz do Iluminismo
Poesia, abstração e história de um malogro nacional
Cláudio R. Duarte

RESENHAS

Ce cauchemar qui n’en finit pas
Resenha comentado do novo livro de Christian Laval e Pierre Dardot
Fred Lyra de Carvalho

Sinal de Menos #12, vol. 1

capa-12-1

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Após outro longo intervalo, publicamos aqui mais uma edição dupla de Sinal de Menos.

O mundo do capital segue seu curso de colisão, como diagnosticamos em números anteriores da revista. De 2014 para cá, passando pelo “golpeachment” de 2016, o Brasil confirma-se na vanguarda dos processos mundiais de retrocesso. A retomada do poder por uma camarilha de conspiradores e tecnocratas blindados pela mídia, verdadeiros usurpadores profissionais da pilhagem social, que por uma década toleraram os aprendizes da rapina sistemática oriundos do meio sindical para fins de “gestão da barbárie”, só pode nos conduzir agora a uma maior destruição dos direitos sociais e a um domínio cada vez mais rígido da lógica do mercado – na verdade, do capital global em fase de esgotamento de sua valorização real.

Um processo de estilhaçamento social para o qual a palavra “golpe” começa a parecer inadequada, como Paulo Arantes notou ainda há pouco, considerando-se que tudo foi conduzido aparentemente na mais estrita conformidade das leis. É claro que com as devidas torções interpretativas de sentido, deixando coexistir lado a lado casos em que elas se aplicam e não se aplicam, tudo em certo grau dependendo do casuísmo do bloco de poder mais forte do momento. Por outro lado, parece que o próprio estado de exceção redefine suas formas quando um ordenamento social que já o aplicava em certos espaços não é cancelado e suspenso para implantar uma outra Ordem, dessa vez mais rígida e com um projeto de integração abertamente autoritário como o de 1964, mas para implantar a rapina e a desintegração social sob a capa ideológica da “legalidade democrática”, da restauração das “liberdades” e da “lógica do mercado”. Na consciência social e na opinião forjada pela indústria da cultura pode até parecer que tudo vai voltando ao normal. Se não estamos enganados, hoje vivemos algo como uma renaturalização das estruturas fetichistas do capital. O resultado mais claro disso foi o avanço da direita em todo o país nas últimas eleições municipais e a impotência da massa diante da “ponte para o retrocesso” que vai sendo construída.

Contudo, de maneira mais ou menos prevista após a crise de 2008, o declínio do preço das commodities, o aumento do déficit fiscal, da frustração de receitas, além da ampliação insana de pagamentos de juros da dívida pública, o Brasil entra na rota do desfiladeiro das modernizações retardatárias. A normalidade é pura ideologia. Não por acaso as reformas arrasa-quarteirão planejadas surgem no momento exato do agravamento da crise, logo após o novo tipo de golpe palaciano inventado. Da destruição prometida pela reforma previdenciária à reforma trabalhista, da reforma do Ensino Médio e do SUS à liquidação geral do patrimônio público até, enfim, a chamada “PEC do fim do mundo”, o que aparece claro já na superfície é a imposição do mais puro economicismo, para o aplauso dos mercados. O que é imposto o mais velozmente possível através de um governo ilegítimo e inimigo do debate público, mediante a estratégia terrorista-midiática “suave” campeã em indignação seletiva, um setor comprado por gordas verbas de publicidade, vale lembrar. Um conjunto de forças conservadoras que insufla uma incontável perseguição antiesquerda, digna dos dias da guerra fria. “Ordem e progresso”: até mesmo o lema positivista da bandeira foi ressuscitado. Eis aí a nossa contribuição para a renovação da Doutrina do Choque, tal qual anunciada por Naomi Klein.

Como estamos na periferia, porém, o buraco é sempre mais embaixo e parece não haver limite para a rapina e a degradação social, bem como para a violência repressiva que se seguirá, e que no momento, aliás, deve estar sendo preparada. O ritmo brasileiro daqui para diante parece ser então o de uma espiral paradoxal de “reformas destrutivas” em doses cavalares, também conhecidas eufemisticamente como “ajustes neoliberais” e “políticas de austeridade”. Se tudo isso se confirmar, teremos um claro desmonte do Estado nacional, não evidentemente como sua superação por formas de democracia direta, participativa e descentralizada, mas antes como sua anexação quase imediata pelas forças do capital e dos estratos burocráticos corrompidos. O aumento das disparidades sociais é certo, embora não esteja fora de cogitação a retomada de investimentos e de um certo crescimento de tipo “canibal” sobre a força de trabalho e os recursos naturais. Se uma tal decomposição social assim se realizar ela também será passível de ser virada dialeticamente do avesso, prenunciando a ruptura do novo consenso de aço que renaturalizou o fetiche. Que tipo de lutas e práticas sociais isso suscitará é uma página inteiramente em branco.

Ocorre que no momento em que as forças produtivas atingem níveis que poderiam libertar a sociedade não apenas do trabalho excedente, mas do trabalho abstrato em geral e do sistema produtor de mercadorias como totalidade, mais ela se enreda nessas formas, mais trabalho ela exige de suas criaturas deformadas, que, por uma espécie de “encantamento”, como diria Adorno, começam a incorporar positivamente a lógica do desmanche e da dessolidarização como destino inevitável e até mesmo como oportunidade de ganhos extraordinários. É que o estado de exceção inaugura todo tipo de suspensão de regras da civilidade burguesa, incluindo seu sujeito histórico liberal “responsável”, subjugado pelas formas de um sobrevivencialismo narcísico e de uma regressão que traz à tona formas de preconceito e ódio reativo. É assim que a CAPA da revista elaborada por FELIPE DRAGO, inspirada em desenho do “Proyecto Cabra”, remete aos sonhos malignos de ódio cego e sem direção que estão sendo destravados. É como se na ausência do grande Outro uma série de pequenos outros desabrochasse sem pautas, a não ser a da (auto)destruição. Após a queda do pai e da erosão da Lei, ainda mais corroída pela acumulação digital e flexível, a massa neoliberalizada pelos fundos “foge para as colinas”, nas asas de governos conservadores, francamente autoritários ou apenas austericidas, como se vê em diversas partes (EUA, Ucrânia, Hungria, Turquia, Filipinas, Tailândia, Egito, Brasil, Grécia, Espanha, França, dentre outros), e isso sem falar no Estado Islâmico e nas dezenas de regimes monárquicos, fundamentalistas e ditatoriais espalhados pelo mundo. A incorporação da lógica da concorrência no caráter e no comportamento por meios tão diversos quanto o emprego, a mídia e as redes sociais, a escola e a cultura do empreendedorismo só encontrará seu limite se a objetividade da crise aparecer como crise do sistema do capital e não deste ou daquele governo isolado. Para isso servirá a teoria crítica que se acumula à margem da práxis existente, necessária e urgente como momento de um longo processo de transição, mas frágil e limitada para as tarefas que despontam no horizonte.

Esses temas não deixam de comparecer neste novo número de Sinal de Menos, em que temos dois dossiês: ANSELM JAPPE e JAMES JOYCE.

A revista inicia-se com uma nota explicativa ao DOSSIÊ JAPPEAs Aventuras do Sujeito – traduzido por Fred Lyra e Pedro Henrique de Mendonça Resende, aos quais a revista gostaria muito de agradecer publicamente. Partindo da teoria da Wert-Spaltung (que vem sendo traduzido por “dissociação-valor”, ou “valor-cisão” [de gêneros]) de Kurz e Scholz (entre outros), ANSELM JAPPE tece as relações entre fetichismo da mercadoria e narcisismo, que poderia ser interpretado como o lado subjetivo do primeiro. Em questão – para nós aberta – fica a forma do eu moderno ou a forma do sujeito em geral (nesse caso, incluindo toda a estrutura pulsional freudiana). O dossiê reúne primeiramente um pequeno excerto de ENTREVISTA concedida a um colaborador da editora portuguesa Antígona, em que o escritor apresenta o projeto de seu livro intitulado As aventuras do sujeito, a ser publicado na França em 2017. Seguem-se três artigos publicados entre 2012 e 2016 por Jappe, que gentilmente autorizou sua tradução: NARCISISMO E FETICHISMO DA MERCADORIA – Algumas observações a partir de Descartes, Kant e Marx; NARCISO OU ORFEU? – Observações sobre Freud, Fromm, Marcuse e Lasch; e DA “AURA” DOS ANTIGOS MUSEUS E DA “EXPERIÊNCIA” DOS NOVOS.

O segundo DOSSIÊ, dedicado a JOYCE, inicia-se com dois ensaios corajosos de RAPHAEL F. ALVARENGA. No primeiro deles – FORMA, ESTILO, PASTICHEConsiderações sobre o Ulysses de Joyce – o autor expõe alguns pressupostos para uma leitura crítica e materialista do escritor irlandês, especialmente dessa obra maior do modernismo literário que continua sendo o Ulysses. No segundo – HAMLETS DE FARDA NÃO HESITAM Uma leitura materialista do Ulysses –, uma crítica refinada desse romance é buscada de acordo com o trajeto anteriormente apresentado, através de uma série de interpretações de pontos cruciais em cada capítulo da obra. Tal leitura redescobre o coração pulsante de sua forma heterogênea, capaz de incorporar estilos os mais variados sem perder nada em sua determinação pelo conteúdo social, fundado que está na penetração da lógica do capital numa sociedade semiperiférica e dependente, com personagens moldadas e mobilizadas pelo processo, numa espécie de mimese construtiva exuberante de uma base de vida miserável. E que apenas em sua desolação e identificação negativa pode suscitar algum desejo de ruptura. O dossiê finaliza com o artigo de CLÁUDIO R. DUARTE – PERIFERIA/PARALISIAA figuração do inferno colonial no primeiro Joyce. O ensaio mostra a evolução do escritor de Chamber Music a Dubliners, no início do séc. XX, interpretando sua recriação paródica do Inferno de Dante, especialmente no conto cortante intitulado “Counterparts”. Temos aí um Joyce mais seco, mais objetivo, mais econômico, mas já afinado às dissonâncias de uma sociedade neocolonial que delineia incessantemente uma espécie de “movimento paralítico”: cristalizado entre o mito e a história, o ensaio de mudança e o seu desaparecimento, soçobrando na mesmice do estado de exceção irlandês e da abstração real capitalista. De certo modo, os dois dossiês da revista parecem formar um vínculo subterrâneo na medida em que pensam os antagonismos estruturais constitutivos do sujeito e do indivíduo modernos.

A revista prossegue com questões relacionadas ao trabalho, à crítica musical e aos movimentos possíveis na sociedade urbana. No artigo de título irônico – O TRABALHO EM MARX É ONTOLÓGICO, #SQN; Crítica categorial da forma limitada da atividade humana – THIAGO FERREIRA LION e THIAGO ARCANJO CALHEIROS DE MELO destrincham o suposto caráter ontológico da categoria trabalho em Marx. O artigo traz diversas citações nas quais o revolucionário alemão deixa entrever uma diferente forma de lidar com tal categoria, concebendo-a como radicalmente histórica. O texto visa tratar o tema de maneira simples e renovada, partindo de perguntas como: “regar as plantas é trabalho?”. Tal abordagem tem o intuito de demonstrar que a atividade materialmente determinada em si importa menos para sua categorização que sua relação com outras atividades abstratamente comparadas por meio do mercado, afinal, poucos considerariam regar seu próprio jardim como sendo trabalho, mas ninguém negaria que um jardineiro que “ganha” para regar o jardim de outrem está trabalhando. Apesar do esforço em dialogar o mais amplamente possível, o artigo expõe formulações bastante complexas, todas postas a partir do panorama histórico do desenvolvimento das relações mercantis e da oposição entre realidade e consciência. Esta última reflexão, por sua vez, nos revela identidades entre a crítica categorial esboçada em Marx – e desenvolvida pela Crítica do Valor – e aspectos fundamentais da teoria de Hegel.

A seguir, temos o ensaio de FRED LYRA, intitulado POR UMA NOVA CRÍTICA DA MÚSICA Primeiras notas, que busca introduzir algumas ideias para a renovação deste que é, historicamente, um dos principais eixos da crítica da arte e ideologia: a crítica musical. Inicia com um diagnóstico feito a partir das ideias do filósofo Paulo Arantes sobre a temporalidade atual da música. No segundo momento, nos deparamos com uma crítica e análise daquela que parece ser a forma de escuta predominante no mundo presente: a forma do condomínio. Na sequência, o texto discute Simbolismo e Sentido, Função e Utilidade onde aparecem algumas questões fundamentais em torno desses quatro conceitos. Por fim, o artigo sintetiza algumas diretrizes básicas em relação à posição do personagem ou sujeito que é um dos eixos da questão: o músico – muitas vezes esquecido em detrimento do objeto música.

Ao final temos dois ensaios que articulam reflexões sobre um processo de reversão prática do existente. Em ENTRE UMBRAIS E VIRTUALIDADES – Mundos possíveis?, HELENA CASTELLAIN BARBOSA DE CASTRO dá um tempero mais otimista à revista, relembrando as questões lefebvrianas que nascem no seio de uma “sociedade urbana” em vias de se completar, concentradora que é das mais agudas contradições do espaço, apontando-nos que o trem desgovernado em que viajamos pode descarrilar assim que forem ultrapassados certos umbrais teóricos e práticos. Já no artigo de FRANK RUDA (gentilmente indicado e traduzido por Luiz Philipe de Caux), COMO AGIR COMO SE NÃO SE FOSSE LIVREUma defesa contemporânea do fatalismo, o autor baseia-se em Descartes, Kant, Hegel e Marx – tirante este último, eis a tradição duramente criticada por Jappe – a fim de oferecer uma abordagem crítica do estado subjetivo hoje predominante: a indiferença. Suas coordenadas conceituais são elaboradas sistematicamente e é mostrado em que sentido ela implica, em última análise, uma concepção problemática e mal compreendida de liberdade. Tendo como pano de fundo essa análise, o artigo defende o fatalismo como um meio possível para enfrentar estados de indiferença e, desse modo, dar um passo da análise crítica à formulação afirmativa de um princípio de orientação: “age como se não fosses livre”. Se isso é ou não uma questão plausível, para dizer o mínimo, fica para o leitor julgar e decidir. O fato menos controverso parece ser que a realidade degradada atual não pode deixar as pessoas indiferentes ad eternum.

Por isso mesmo a revista termina com a salada de palavras grotescas, colhida e servida na hora da sessão de admissibilidade do IMPEACHMENT de Dilma, na Câmara dos Deputados, captada por uma arguta observadora, CAMILA PAVANELLI DE LORENZI, a qual agradecemos pelo registro da farsa tragicômica do desmanche nacional.

Em outros termos, e como reforçará nosso segundo volume, o fim do mundo da mercadoria já chegou para a maioria – talvez não apenas no seu condomínio.

Novembro de 2016.

[-] Sumário #12, vol. 1

Editorial

DOSSIÊ ANSELM JAPPE

Projeto As aventuras do sujeito
Nota introdutória
Pedro Henrique de Mendonça Resende

Entrevista com Anselm Jappe

Narcisismo e fetichismo da mercadoria
Algumas observações a partir de Descartes, Kant e Marx
Anselm Jappe

Narciso ou Orfeu?
Observações sobre Freud, Fromm, Marcuse e Lasch
Anselm Jappe

Da “aura” dos antigos museus e da “experiência” dos novos
Anselm Jappe

DOSSIÊ JAMES JOYCE

Forma, estilo, pastiche
Considerações sobre o Ulysses de Joyce
Raphael F. Alvarenga

Hamlets de farda não hesitam
Uma leitura materialista de Ulysses
Raphael F. Alvarenga

Periferia / paralisia
A figuração do inferno colonial no primeiro Joyce
Cláudio R. Duarte

ARTIGOS

O trabalho em Marx é ontológico, #SQN
Crítica categorial da forma limitada da atividade humana
Thiago Ferreira Lion e Thiago Arcanjo Calheiros de Melo

 Por uma nova crítica da música
Primeiras notas
Fred Lyra

Entre umbrais e virtualidades
Mundos possíveis?
Helena Castellain Barbosa de Castro

Como agir como se não se fosse livre
Uma defesa contemporânea do fatalismo
Frank Ruda

(…)

Impeachment
Memória do 1o. ato da farsa brasileira de 2016

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