Sinal de Menos #17


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A situação mundial foi poucas vezes tão complexa. Por um lado, assistimos ao crescimento exponencial de conflitos, bélicos ou não, entre Estados e no interior deles, em todos os continentes, por outro, uma nova fase de tecnologização da realidade baseia-se numa configuração da técnica que, ao invés de ser a tradução de novos valores que impulsionem a superação do trabalho alienado (Marcuse), tendem a reforçar a sua perpetuação violenta na era mesma do seu anacronismo: guerras (drones), novo estágio de desemprego estrutural via automação dos processos cognitivos (IA), vigilância generalizada (algoritmos, redes sociais). Gaza atualizou o genocídio e a destruição de um território. Nesse imbróglio a extrema direita conservadora e protofascista (quando não efetivamente fascista) continua a sua ligeira ascensão em estreita relação com uma esquerda que não apenas não combate suas causas efetivas na base nem nas ruas, como tem encarnado o último alicerce da velha ordem neoliberal definhante, enquanto pululam teorizações degradadas que elidem as questões fundamentais: capital e sua crise, e classe e sua perspectiva de autossuperação. É nesse contexto que nos abstemos de um editorial mais detalhado: a situação do planeta e o estágio atual da crise do sistema capitalista exigiriam uma atualização da teoria crítica e das organizações não-conformistas que incorporasse estes aspectos, o que demanda uma elaboração coletiva e internacional, com uma esquerda majoritariamente precarizada, como na época de Marx, embora desta vez assombrada pelo seu passado e futuro. Os textos reunidos no presente volume abordam algumas destas questões. A capa de FELIPE DRAGO, composta a partir de fotografia de autor desconhecido, busca retratar esse momento, apontando tanto para o passado quanto para o futuro, tanto para o anjo da história quanto para o freio de emergência.

Numa entrevista ampla e reflexiva, NEIL LARSEN, crítico literário e teórico norte-americano, discute a trajetória pessoal, intelectual e política que moldou seu engajamento de décadas com a literatura latino-americana, o marxismo e a teoria crítica. Desde seus anos acadêmicos formativos no meio-oeste dos Estados Unidos até seu vínculo duradouro com o Brasil – especialmente São Paulo e o legado de Roberto Schwarz – Larsen traça um percurso marcado por um compromisso profundo com a crítica dialética e imanente. Ao longo do caminho, relembra encontros-chave com figuras como Robert Krueger e Moishe Postone, além de oferecer críticas contundentes às tendências acadêmicas contemporâneas, incluindo a ascensão do discurso reacionário da decolonialidade. A conversa culmina em reflexões sobre a pedagogia, os desafios do ensino da teoria e um ambicioso projeto teórico em andamento sobre mimese e valor. Ao mesmo tempo autobiográfica e analítica, a entrevista é um testemunho de uma vida dedicada a uma erudição politicamente comprometida e intelectualmente rigorosa.

Traduzimos em seguida dois ensaios de LARSEN. O primeiro, Forma objetiva e “dissonância reveladora” n’As aventuras de Huckleberry Finn: uma leitura schwarziana experimental de Mark Twain, reexamina o clássico dos clássicos da literatura norte-americana a partir do conceito de “forma objetiva”, tal como desenvolvido por Roberto Schwarz a partir de Adorno. Em vez de tratar o final controverso do romance apenas como uma falha narrativa, a análise investiga como suas contradições formais refletem tensões sociais e históricas da América pós-Reconstrução, um caso de “dissonância reveladora” mais do que de inconsistência artística. A jornada paradoxal, em que a fuga da escravidão leva de volta à reescravização, espelha possibilidades frustradas de solidariedade de classe inter-racial, especialmente entre brancos pobres e negros escravizados. Com base em estudos sobre a repressão de classe no Sul escravista, o ensaio interpreta a relação entre Huck e Jim como um vislumbre utópico dessa solidariedade, sistematicamente sabotada pelas classes proprietárias, enquanto a figura de “Pap” Finn, o pai de Huck, é lida como tipificação da reação conservadora estadunidense, conferindo ao romance uma inesperada relevância contemporânea.

O segundo ensaio, Borges como realista, propõe uma interpretação inovadora de Jorge Luis Borges, desafiando a visão predominante que o posiciona exclusivamente no campo do modernismo literário. Ao analisar o conto “Funes, o memorioso”, Larsen identifica uma vertente realista na obra de Borges, caracterizada por uma atenção meticulosa aos detalhes regionais, culturais e históricos. Essa abordagem realista não se limita a uma mera representação mimética, mas manifesta-se através de uma narrativa que, embora fantástica, revela um profundo conhecimento da realidade local. Utilizando o conceito de “ideia fora de lugar” de Roberto Schwarz, o autor mostra como Borges emprega deslocamentos para questionar estruturas sociais e culturais, oferecendo uma visão mais complexa que une realismo e fantasia em sua escrita.

Noutro ensaio sobre o escritor argentino, “Tempo de lobos, tempo de espadas” – Nos porões de Tlön: idealismo feroz e estado de exceção permanente em Borges, CLÁUDIO R. DUARTE dialoga com o texto precedente, assinado por Larsen, bem como com “Uma poética da abstração”, artigo de William Augusto Silva publicado anteriormente em Sinal de Menos (#15, v. 1). Através da leitura de alguns textos variados da obra de Borges, emerge de fato um Borges “materialista”, mas caracterizado por um “realismo” complexo e de segunda ordem: um “idealismo feroz” que opera em elevado nível de abstração, generalização e ideologia de fundo conservador, pendendo para uma moral individualista e civilizatória, como simples contenção de danos. No entanto, sustenta o autor, tal estrutura literária é anticonservadora, pois é um contínuo processo de mediação e mescla de formas literárias acumuladas e reconstruídas pelo artista através da internalização formal de materiais históricos, que remetem aos processos violentos de fundação nacional argentina e latino-americana, à instauração do espaço abstrato das metrópoles, do capital e do trabalho como reino de “abstrações reais”, cujo desfecho global foi, tal como captado por Borges após a 1ª Guerra Mundial, a lógica de um estado de exceção permanente em escala mundial. Daí portanto emerge o “idealismo feroz” borgeano de “Tlön” e outros contos fantásticos: como crítica a esta lógica de abstração fantasmagórica e de bando soberano secreto, infame e pseudo-sacralizado que, do caudilhismo ao nazifascismo, tem buscado instaurar a “espada” da lei de exceção contra todo outro convertido em “lobo”, homem-fera, vida nua infame e exterminável.

Na sequência, em Metástase da superestrutura: a decolonialidade como sintoma, RAPHAEL F. ALVARENGA examina como a teoria decolonial, em sua forma hegemônica, cristalizou-se numa ortodoxia moralista, centrada na identidade como performance e marcada pela proliferação de uma “polícia decolonial” pautada numa concepção reificada de “lugar de fala”. Amalgamando histórias heterogêneas – das lutas pela independência na América Latina à descolonização africana e ao pós-colonialismo no sul da Ásia – numa grande narrativa, a dita teoria, em grande parte repaginação de tropos pós-estruturalistas e pós-coloniais (como a ideia de que o conhecimento é historicamente situado, vinculado ao poder e moldado pelas histórias coloniais) consolidou-se nas últimas décadas como marca acadêmica global, embora extrapole em muito os muros da universidade. Ao conceber a história como disputa entre sistemas de conhecimento, privilegiar essencialismos identitários e afetos de ressentimento em detrimento de uma análise rigorosa das estruturas sociais e das correlações de forças políticas em presença, e ao defender uma desvinculação do ideário libertário ocidental em vez do enfrentamento direto ao capitalismo, a atual ideologia decolonial não apenas bloqueia os caminhos para a solidariedade de classe – interracial e internacional – como também abre espaço para alianças altamente questionáveis. Dentre os temas tratados pelo autor, destacam-se as controvérsias dos cancelamentos, as limitações inerentes ao paradigma interseccional, os pressupostos linguísticos duvidosos, as ambivalências das fronteiras culturais fetichizadas, bem como a instrumentalização do Ocidente como espantalho ideológico.

Em Dos motoqueiros rebeldes à espiã em lágrimas: a tragédia da classe profissional-gerencial no cinema de Kathryn Bigelow, DANIEL CUNHA investiga a obra da cineasta estadunidense como uma totalidade histórica, defendendo – à luz da extensão do jovem Lukács desenvolvida por Lucien Goldmann, segundo a qual toda “visão de mundo” emerge da posição de um grupo social em uma situação histórica determinada – que ela expressa a visão de mundo da classe profissional-gerencial (CPG). O autor recorre também à interpretação dialética de Fredric Jameson e às teorias psicanalíticas de Herbert Marcuse e Christopher Lasch para traçar uma transformação ao longo dos filmes de Bigelow: de representações iniciais de comunidades marginais (marcuseanas) e figuras mediadoras, para retratos posteriores dominados por protagonistas com tendências narcísicas, identificando também uma fase de transição. Argumenta-se que a formação marxista-maoísta inicial de Bigelow continua a moldar as estruturas formais de seus filmes, que transitam, paralelamente, da dialética sintética para a dialética negativa. Esta trajetória resulta em uma aporia entre forma dialética e conteúdo moralizante — um impasse mais visível em sua obra pós-11 de setembro. Em vez de entendê-la como inconsistente, o autor a interpreta como sintoma da própria trajetória histórica da CPG nos Estados Unidos. Ao ler os filmes de Bigelow como expressões da consciência da CPG, também se fornece elementos para a discussão da teoria do autor a partir de uma perspectiva sociológica crítica e do papel político desta classe no capitalismo tardio. O artigo conclui especulando sobre o seu próximo filme, de fato atualmente em cartaz nos cinemas, e propondo respostas cinematográficas alternativas às crises contemporâneas.

Também assinado por DANIEL CUNHA, Teses sobre o trumpismo: crise do capital, falência da esquerda e neofascismo busca interpretar o que significa a ascensão de Donald Trump a partir de uma perspectiva histórico-mundial. O autor sustenta que as políticas liberais praticadas por democratas prepararam o terreno para o trumpismo, que pode agir como “agitador” enquanto não era afetado pelo “pânico moral” praticado pelos democratas. Em outra camada de tempo, o autor sustenta que o trumpismo é a terceira iteração, em nível mais elevado, do negacionismo de crise, que iniciou com Richard Nixon e o fim do padrão-ouro nos anos 70, que sinalizou o “anacronismo do valor”, e passou pelo projeto de hegemonia dos neocons. Esse negacionismo de crise já produziu catástrofes – no Vietnã, no Iraque – e as está produzindo novamente, de uma maneira que ficará mais clara apenas com mais perspectiva histórica. O antídoto contra os agitadores então seria a consciência de classe internacionalista, que se faz urgente inclusive para evitar uma terceira guerra mundial.

Em Indústria, lógica e guerra cultural, FREDERICO LYRA retoma o conceito frankfurtiano de indústria cultural em nova chave de leitura no intuito de estendê-lo em duas outras direções através do eixo constitutivo comum do conceito contemporâneo de cultural. Indústria cultural, lógica cultural e guerra cultural formam assim uma constelação. Demonstra-se que noção de indústria cultural, cunhada por Adorno, abarca para além do problema da arte, mas refere-se à administração e padronização de toda a produção cultural como mercadoria. A partir do pós-guerra, o capitalismo tardio consolidou-se como lógica cultural, tal qual identificado por Fredric Jameson, naturalizando sua dominação pela estetização da vida e pela integração total entre base e superestrutura. No presente, arte e cultura operam como engrenagens do capitalismo artista, marcado pela superprodução e irrelevância crítica. A radicalização desse processo aparece na noção de guerras culturais, conflitos em torno de valores e identidades que fragmentam as democracias contemporâneas. O mundo virtual torna-se campo privilegiado dessas disputas, em que representação e realidade se confundem, mas tenta-se mostrar que as guerras culturais apontam para além do virtual incidindo no real.

Fechamos a seção de artigos com Uma nova arte cortesã?, texto inédito de ANSELM JAPPE, que problematiza a oposição clássica entre “cultura erudita”, entendida como instrumento da dominação burguesa, e “cultura popular”, celebrada como expressão dos subalternos. Jappe demonstra que ambas se encontram hoje submetidas à lógica mercantil. As vanguardas do século XX, outrora insurgentes, foram assimiladas pelo capitalismo, de modo que a arte contemporânea converteu-se em “arte de corte”, a serviço das elites financeiras e de marcas de luxo, reduzindo a transgressão a estratégia de marketing. Dinâmica semelhante atinge manifestações como o rap e a street art que, embora frequentemente apresentadas como resistência cultural, são incorporadas ao mercado global na forma de mercadorias “rebeldes”. Contra tanto o mito progressista da autenticidade da cultura popular quanto a farsa transgressiva da arte contemporânea, Jappe indica duas possibilidades de contestação: práticas culturais desenvolvidas fora dos circuitos industriais (produção artesanal, iniciativas comunitárias) e a reapropriação crítica do patrimônio cultural, capaz de desencadear experiências formativas e resistir à padronização do imaginário imposta pelo capitalismo digital.

Encerramos esta edição com um poema sem título, sobre Gaza, da pluma de YAGO MELLADO, poeta, músico e tradutor espanhol. Os versos evocam um refúgio ilusório além do horizonte, do outro lado de um mar implacável que se revela uma zona fantasma onde todos os vetores de fuga convergem para uma mesma terra devastada: o deserto, que não se limita a se estender, mas prolifera, deixando apenas o zumbido estático da perda e da ruína. Se não há vida possível em Gaza, vida digna do nome, sugere o poeta, tampouco existem saídas para a humanidade: nenhuma brecha por onde escapar à entropia inexorável da ausência de sentido.

Outubro/2025

Sumário #17

Editorial

Entrevista com Neil Larsen

ARTIGOS

Forma objetiva e “dissonância reveladora” n’As aventuras de Huckleberry Finn
Uma leitura schwarziana experimental de Mark Twain
Neil Larsen

Borges como realista
Neil Larsen

Tempo de lobos, tempo de espadas
Nos porões de Tlön: idealismo feroz e estado de exceção permanente em Borges
Cláudio R. Duarte

Metástase da superestrutura
A decolonialidade como sintoma
Raphael F. Alvarenga

Dos motoqueiros rebeldes à espiã em lágrimas
A tragédia da classe profissional-gerencial no cinema de Kathryn Bigelow 
Daniel Cunha

Teses sobre o trumpismo
Crise do capital, falência da esquerda e neofascismo
Daniel Cunha

Indústria, lógica e guerra cultural
Frederico Lyra de Carvalho

Uma nova arte cortesã?
Anselm Jappe

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Poema sem título
Yago Mellado

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